No
dia 4 de março de 1945, Pablo Neruda havia sido eleito senador da República
pelas províncias de Tarapacá e Antofogasta, situadas na região das minas de
cobre e salitre, a região mais dura do Chile, ele diz em Confieso
que he vivido: Em poucos lugares do
mundo a vida é tão dura e ao mesmo tempo tão desprovida de mimos para vivê-la.
Percorrendo-a, como senador eleito por essa gente
sem escola e sem sapatos, sua poesia foi-se alimentando dos padecimentos e
das lutas, dos amores e dos cantares que presenciou e sentiu; enriquecida pelo
que ele chamou de uma dura lição de estética e de busca através dos
labirintos da palavra escrita o fizeram chegar a ser poeta de seu povo.
Nesse ano, recebe o Prêmio Nacional de Literatura de seu país, ingressa no
Partido Comunista Chileno, é convidado para visitar o Brasil e conhecer Luís
Carlos Prestes recém posto em liberdade, após dez anos de cativeiro. No dia 15
de julho, diante das cem mil (ou, oitenta mil ou cento e trinta mil) pessoas
que lotavam as arquibancadas e o gramado do Estádio Municipal do Pacaembu onde
se realizava o comício dos comunistas, Pablo Neruda, na tribuna oficial, ao lhe
ser dada a palavra, em vez de um discurso, lê, em espanhol, o poema escrito
horas antes, em louvor a Luís Carlos Prestes. Emocionada, a multidão aplaudia a
cada verso e tanto que, ao terminar, conforme relata Fernando Morais (Olga,
São Paulo, Alfa-Ômega, 1985), como os aplausos não cessassem, voltou ao
microfone para repetir o último verso: Silêncio:
que o Brasil falará por sua boca.
Alguns
dias depois, no dia 30 de julho, diz Margarita Aguirre (Las vidas del Poeta,
Santiago, Zig-Zag, 1967), no Rio de Janeiro, Pablo Neruda é recebido na
Academia Brasileira de Letras. Na revista da Instituição (Ano 44, v.70, 1945)
consta, no entanto, que a visita ocorreu no dia 26 de julho. Acolhido, na
companhia de personalidades (cujos nomes não foram citados na ata que registrou
essa sessão), com uma salva de palmas e algumas frases de saudação do
Presidente da Casa que a seguir deu a palavra ao poeta Manuel Bandeira. Meu caro Senador Pablo Neruda, assim ele
se dirige ao Poeta, pedindo permissão para tratá-lo de senador embora seja o detentor de um dos maiores potenciais poéticos existentes em
todo o mundo, porque sabe que ele se envaidece mais do mandato, recebido
dos mineiros chilenos, que do Prêmio Nacional de Literatura de seu país que
acabara de receber. A seguir, menciona, entre os acadêmicos que fundaram a
Instituição, aqueles que dedicaram a mocidade aos ideais que de Pablo Neruda
são mais diletos: a justiça social, a liberdade, a república, a democracia. E
entre os literatos, os que renovaram o ambiente espiritual brasileiro,
imobilizado pelo exaurir romântico. Refere o ter sido a Academia considerada
uma instituição reacionária e rebate a asserção com o argumento de que, se
assim fosse, não estaria ele, nesse momento, expressando o seu fervor pela
poesia livre, impura, romântica, expressionista, profética, originado da leitura de Veinte poemas de amor y una
canción desesperada. Cita as palavras de Garcia Lorca (rapaz encantador, raro e potente poeta) quando apresenta Pablo
Neruda na Universidade de Madrid, definindo-o como um poeta mais perto da morte do que da filosofia; mais perto da dor que da inteligência; mais
perto do sangue do que da tinta. Palavras que Manuel Bandeira endossa,
acrescentando que a vida posterior do Poeta iria confirmar tais asserções. E se
refere às críticas a Residencia en la tierra (qualifica-o de grande
livro) que foi tido como o solilóquio
incoerente de um homem que se divorciou da vida que o rodeia e aquelas
enunciadas por Amado Alonzo no longo estudo que dedicou à poesia de Pablo
Neruda onde consta a insistência com que aparecem nos poemas as palavras ceniza e polvo. E, embora aceitando as pechas que lhe atribuem – céptico, pessimista – Manuel Bandeira pede perdão por repeti-las e afirma
que, diante da Espanha em ruínas, a poesia de Pablo Neruda mudou, jurando defender
até à morte o que assassinaram na Espanha o
direito à felicidade, tornando-se a
voz mundial da Poesia reivindicatória.
Encerrando a saudação, Manuel Bandeira menciona Parral, o lugar de nascimento do Poeta, seus dois livros mais conhecidos e
que todo o Brasil ouviu comovido a saudação do Pacaembu. Na primeira pessoa
plural a englobar os acadêmicos, em nome dos quais se expressa, reconhece no
Poeta o sangue, as dores, o justo anelo
de felicidade dos mineiros de Tarapacá e Antofogasta e diz da honra de tê-lo como visitante e saúda, na
pessoa do Poeta, a sua pátria.
Grandiloqüente
e plena de floreios foi a resposta de Pablo Neruda: adjetivos, metáforas,
símiles, para recordar os nomes
essenciais de Machado de Assis e Euclides da Cunha e dos rumorosos
poetas maiores: Castro Alves, Gonçalves Dias e Alvarez de Azevedo. Irá
defini-los como aqueles que atacaram o monumento da tradição e a expressão de
sua época e que se tornaram, por sua vez, tradição e monumento, porque não cultivaram um templo vazio mas o
coração e o destino do homem e ao inventário da riqueza estética do Brasil,
trouxeram nos seus cantos caudalosos a
voz indestrutível de seu povo. Refere-se à atenção que foi dada a sua obra,
cujo valor, ele diz, talvez esteja apenas em continuar com o seu tom pessoal, a antiga profissão dos trovadores de amor e de guerra, de fé e esperança.
E se atém aos temas de seu canto – as tristezas e as lutas da época em que
vive, o louvor aos heróis e a defesa dos ideais. Sem renunciar, no entanto, à
herança cultural – o pensamento e a
beleza que herdamos – e lhe dar continuidade, entrelaçando o passado com o
presente. E, agradecendo a acolhida, diz de seu sonho: uma só América na dignidade da liberdade
e na unidade da cultura.
Nesse
por assim dizer diálogo entre os poetas, Manuel Bandeira, que se dirige a Pablo
Neruda com o cerimonioso uso do pronome vós, faz menção à episódios
recentes de sua vida, que, provavelmente, tenham circulado na imprensa. Porém,
ao citar as palavras de Frederico Garcia Lorca numa cerimônia ocorrida há
tantos anos passados e as de Amado Alonzo (Poesia y estilo de Pablo Neruda,
1940), demonstra um interesse maior pelo Poeta que será inegável ao expressar a
sua admiração por Veinte poemas de amor y una canción desesperada (1924)
e Residência en la tierra (1935). Faz referência ao poema “Entrada a la
madera” e cita alguns versos de “Oda con un lamento”, de “Arte poética” e de
“Madrid” de España en el corazón.
Dirigindo-se
aos acadêmicos também a usar o respeitoso vós, é breve a homenagem de
Pablo Neruda nessa rápida menção aos cinco autores brasileiros. Sobretudo, ele
expressa e reiterando, a humildade – quero
deixar uma palavra invalidada por meu menor merecimento, minha pequena história de escritor, a simplicidade de minha poesia – o imenso respeito com que abre os livros do
passado.
Donos das palavras e de suas riquezas, os
poetas, no recinto das normas e dos preceitos, se deixaram conduzir. E, ao
falar com serena sobriedade ou exuberante entusiasmo, a voz de um e de outro
resultou contida.
Cecilia Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná, Curitiba, 23
de maio de 2004