No dia 18 de julho de 1943,
estava sendo enterrada na cidade do México, Leocádia Felizardo Prestes para
descansar de uma vida de amargurada e trabalhosa velhice. O filho preso, Olga,
sua mulher, judia alemã, entregue, pelo governo brasileiro aos nazistas e
levada, do Rio de Janeiro para Hamburgo, num cargueiro que – assim diz Jorge
Amado em Vida de Luis Carlos Prestes: O Cavaleiro da Esperança –,
“reproduzia as viagens dantescas dos navios negreiros”. Logo ao chegar na Alemanha, presa em
Barnimstrasse, deu à luz a uma menina que será criada sem alimento suficiente,
sem condições de higiene, até pouco mais de um ano. Numa luta ferrenha, ajudada
pelos pedidos, protestos, clamores, chegados de todas partes, a avó irá
resgatá-la da prisão, mas a luta em prol da liberdade do filho não a deixa,
ainda, calar-se. É impedida de voltar ao Brasil. No México, onde foi recebida,
vive na incerteza e na angústia de saber que, no Brasil, estão martirizando o
seu filho. Quando morre, erguem-se vozes, pedindo ao governo brasileiro alguns
dias de liberdade para Luis Carlos Prestes – o general Lázaro Cárdenas,
ex-presidente do México, garante com a própria pessoa, a sua volta para a
prisão – assistir ao funeral.
Pablo Neruda que, no México, há
três anos, representava, como cônsul, o seu país, expressa ao embaixador do
Brasil, esse desejo que é de tantos e recebe como resposta – subterfúgio sempre
tão usado para denegrir o inimigo político – que Luis Carlos Prestes estava detido
por delitos comuns. O poeta polemiza, publicamente, com ele. Era o tempo da
França invadida pelos alemães, era o tempo de Estalingrado e na sua intensa
atividade criativa e política, já se mostrava evidente que, em Pablo Neruda, o
poeta e o combatente eram inseparáveis. Getúlio Vargas se recusa em atender o
pedido que lhe fora feito e Pablo Neruda, contrariando conselhos de amigos para
que evitasse, como representante de seu governo, de se expor às críticas,
comparece ao enterro de Leocádia Felizardo Prestes, levando flores e um poema.
Um longo poema que, no dia
seguinte, é publicado na imprensa mexicana e fará parte, como “España en el
corazón”, “Canto a Stalingrado”, “Nuevo canto de amor a Stalingrado” “Canto a
los ríos de Alemania”, entre outros, de Tercera residencia (Buenos
Aires, Losada, 1947), livro que reúne poemas pertencentes ao ciclo da Guerra da
Espanha e da Segunda Guerra Mundial e, também, os desafiantes versos em defesa
de Tina Modotti, e aqueles que enaltecem a Simon Bolívar e a Luiz Companys. A
mãe morta, o filho preso, impedido, pela vontade expressa de um ditador, de
estar presente no enterro, a inutilidade dessa prisão para a luta que se trava
em prol de mudanças, que nada irá impedir de ocorrer, são inequívocos motivos
para o poeta e seus claros, constantes e incansáveis compromissos políticos. E
nos versos que, então, escreve, mais uma vez, procurando a justiça, a inspirada
qualidade e a profunda dimensão lírica ultrapassam os limites de um simples
registro de fatos deploráveis.
Em Confieso que he vivido, Pablo Neruda narra o episódio
que, assim como a tantos, o indignou faz menção a esse poema “em honra de dona
Leocádia, em lembrança de seu filho ausente e em execração ao tirano” e se
refere à sobriedade dos primeiros versos e do tom violento que a eles se
acresce, para designar o “déspota brasileiro”. No título, “Dura elegia”,
significados possíveis do adjetivo – áspero, implacável, inexorável – e o
gênero poético, “canto plangente”, sob o qual se abriga o poema.
Nove estrofes de um número
desigual de versos, o compõem. Inicia-se com um vocativo, “Senhora” que, não
apenas deve ter suscitado emoção entre os presentes da cerimônia fúnebre, ao
ser lido, como guarda, ainda, grande potencial lírico que o cruel, injusto e
arbitrário desencontro entre mãe e filho torna perene. E, imediatamente, lhe
confere o poeta o invejável feito de ter tornado, pelo seu filho, a América bem
maior. Dando voz a todos aqueles que desejam tê-la, assume, então, a voz
coletiva que lamenta a ausência do filho, testemunha que muitos foram os que
vieram para suprir o adeus negado e invoca os libertários da América, estejam
eles vivos ou mortos, para ocupar esse lugar vazio. O uso de um nós, que
elude o individualismo para compartilhar dessa herança de luta e infortúnio que
foi, por ela, “mãe de pranto, de vingança, de flores”, “mãe de luto, de bronze,
de vitórias”, deixada; para seguir-lhe o exemplo de “mãe de fogo e de cravos”,
de “látegos” e de “espada”; para jurar que não haverá pausa – nem sono, nem
sonho – até que seu filho volte. Para reafirmar, no possessivo repetido, serem
todos donos do Continente e reiterar que o combate, que se trava, é insubmisso.
E para louvar, engrandecido pelo caminho que percorre e pelo ideal que busca, a
Luiz Carlos Prestes. Um caminho que obstáculos não cerceiam: “Não há cárcere
para Prestes que esconda seu diamante”. Que vontades – a do “pequeno tirano”,
“com suas pequenas asas de morcego frio”, com seu “turvo silêncio de rato” ou
de “aranha implacável” – não vencem. E um ideal que o situa como “grande
irmão”, ao lado dos “pais da América: “heróis coroados de fúria, de neve,
sangue oceano, tempestade e pombas” e merecedor das enaltecedoras,
encomiásticas qualidades que emergem em metáforas – é um “rio puro de águas
colossais”, é uma “árvore de infinitas raízes” – e em símiles para dizer de seu
coração a sobressair, “através das grades de ferro da prisão”, “como nas
grandes minas do Brasil a esmeralda”, “como nos grandes rios do Brasil a
correnteza”, “como brasa de centelha e fulgores”.
Se o poema é incisivo e, sem
peias, chama de tirano o governante brasileiro e o compara a seres funestos e
se, exasperado, lamenta, a mãe privada de seu filho, na vida e na morte – “Para
tua sede negaram a água que criaste” –, esse arbítrio e essa dor se constituem
incontestes razões para desalentos. Mas, revelando o amor à vida que nutriu
sempre o poeta, como a confiança na felicidade possível, seus versos se
iluminam na figura de Luis Carlos Prestes: um condutor de homens, “cheio de luz
e de grandeza”, “claro capitão” que, embora ausente e “acorrentado”, conduz o
combate. O mesmo combate do poeta e de todos aqueles que se abrigam nesse nós,
expressão coletiva , sujeito dos verbos “mudaremos”, “romperemos”(o que machuca
e faz sofrer) e dos verbos que prometem um mundo melhor (“inundaremos de luz a
tenebrosa cárcere que há na terra”) e,
categoricamente, a vitória. Ações
visando um futuro que o tempo do verbo preconiza e que o advérbio, pleonástico
“amanhã” torna certo e próximo. Como certa e próxima a presença do Capitão.
Em 1945, diante dele, que, depois
de dez anos, saíra da prisão e das cento e trinta mil pessoas – dizem – que
estavam no Estádio Municipal do Pacaembu, Pablo Neruda pede silêncio para as
palavras do “Capitão do Povo”. E, Luiz Carlos Prestes, então, falou, recordará
o poeta, em Confieso que he vivido, “com a serenidade de um general
vitorioso”.
Cecilia
Zokner in Jornal da Biblioteca, Ano
I, Número 3, Curitiba, junho/agosto de 2004