Divisão dos Arquivos

O Blog Pablo Neruda Brasil está apresentado em quatro seções obedecendo à data de publicação da matéria:

Arquivo Cecilia Zokner

Os breves textos sobre a poesia de Pablo Neruda foram publicados sob a rubrica Literatura do Continente no jornal O Estado do Paraná, Curitiba e fazem parte, juntamente com outros textos versando sobre Literatura Latino-americana, do Blog http:\\www.literaturadocontinente.blogspot.com.br. Os demais, em outras publicações.

Arquivo Adriana

Chilena de Concepción, amiga desde 1964, quando convivemos em Bordeaux, ao longo dos anos me enviou livros e recortes de jornal sobre Pablo Neruda. Talvez tais recortes sejam hoje, apenas curiosos. Talvez esclareçam algo sobre o Poeta ou abram caminhos para estudos sobre a sua obra o que poderá, eventualmente, se constituir uma razão para divulgá-los.

Arquivo Delson Biondo

Doutor em Literatura na Universidade Federal do Paraná. No ano do centenário de nascimento de Pablo Neruda, convidei Delson Biondo, meu ex-aluno do curso de Letras para trabalharmos sobre “Las vidas del Poeta, as memórias de Pablo Neruda”, constituídas de dez capítulos, publicados, em espanhol, na revista O Cruzeiro Internacional, no ano de 1962. Iniciamos o nosso trabalho com a sua tradução, visando divulgar, no Brasil, esse texto do Poeta que somente anos mais tarde iria fazer parte de seu livro de memórias Confieso que he vivido. Todavia, várias razões impediram que a tradução fosse publicada no Brasil, mas continuamos a trabalhar sobre “Las vidas de Poeta” no que se referia aos aspectos formais comparativamente a esses mesmos textos que passaram a fazer parte de Confieso que he vivido. Além desse estudo comparativo, pretendíamos nos aproximar, minuciosamente de cada um dos capítulos de “Las vidas del Poeta”. A comparação foi realizada e o estudo do primeiro capítulo concluído. Estávamos já, terminando a redação do estudo do segundo capítulo quando Delson Biondo veio a falecer em maio de 2014. Assim, as notas comparativas dos textos nerudianos e o estudo do segundo capítulo de “Las vidas del Poeta” não foram concluídos. Penso que a eles nada devo acrescentar.

Arquivo Aberto

Arquivo Aberto à recepção de trabalhos escritos em português ou espanhol que tratem da obra de Pablo Neruda, obedeçam às normas da ABNT e sejam acompanhados de um breve curriculum do autor. Os trabalhos poderão ser enviados para publicação neste Blog pelo e-mail pablonerudabrasil@gmail.com.

24 de novembro de 2002

O poeta e o cão

Para o Dov.

As odes de Pablo Neruda se inscrevem, no dizer de Emir Rodriguez Monegal (El viajero inmovil. Buenos Aires, Losada, 1966), no desejo de uma poesia simples para gente simples. Começou a escrevê-las em 1952 e, dois anos depois, reunidas em livro, Odas elementales, foram publicadas pela Losada de Buenos Aires. A crítica, inclusive aquela dos que até então haviam manifestado, em relação a sua obra, toda sorte de reservas, lhe foi, desta vez, elogiosa, submetida à alegria que impera nesse cantar, nascido das mais pequenas coisas. A esse primeiro volume, se acrescentam outras, Nuevas odas elementales (1956), Tercer libro de odas, (1957) e Navegaciones y regresos que, embora com um título diverso, se constitui o quarto livro das odes. Publicado em 5 de novembro de 1959, reúne cinquenta e três poemas. Cantos que são fruto desse ofício – encher de pão as trevas / fundar outra vez a esperança – que o poeta se propõe e que ele quer absoluto nas odes sem fim, A todo sol, a toda lua [...]/ a todo cão, pássaro, navio / a todo móvel, a todo ser humano.  E a âncora, a cama, o sino caído, as coisas quebradas, a cadeira, o prato, o piano, a melancia, as batatas fritas, um preciso momento do dia no Brasil e em Estocolmo, o cavalo, o gato, o elefante, as gaivotas, o cão, recebem esse orvalho que ele diz ter para todos. Orvalho como oferenda do poeta, tal como é da natureza e que ele irá entrelaçar a seus versos, usufruindo a força de sua expressão poética. Na “Oda al perro”, a palavra orvalho está presente no último verso. Um verso muito breve que acrescenta um elemento inesperado, inusual e sugestivo ao ser que o poeta inventa no final de seu poema, homem e cão reunidos num só animal, de seis patas e uma cauda/ com orvalho.  Epílogo para essa pequena história – o homem a passear no campo com seu cão – sintetizada nos dois versos que formam a segunda estrofe: Em pleno campo vamos / homem e cão. Na tríade – o cenário, os personagens, a ação – em que se constrói o poema, um mundo feérico e iluminado e amoroso. As folhas brilham como se alguém as tivesse beijado / uma por uma, todas as laranjas sobem do chão, um túnel verde e logo / uma planície, uma água intranquila na manhã verde, no mundo umedecido pelas destilações da noite em que as raízes murmuram e o trino e o aroma pairam no ar alaranjado. O poeta está presente – a si próprio se chama o poeta do bosque – e como que preterido por esse companheiro que pergunta sem falar (seus olhos são duas perguntas úmidas, duas chamas líquidas), persegue as abelhas, para, pula sobre a água, urina numa pedra, corre pelo campo e a quem ele não responde. Não pode responder, pois não sabe decifrar enigmas: por que a primavera / não trouxe em sua cesta / nada / para os cães errantes / apenas as flores inúteis. O diálogo não se faz com palavras. Elas sobejam na espontânea comunhão nascida entre o cão a oferecer a ponta de seu focinho e o homem a receber essa expressão de sua ternura. Num e noutro é a alegria de viver que os conduz entre os dedos claros de setembro.  Unidos, cão e homem, homem e cão, num existir de amizade antiga.
Para sempre.
 

Cecilia Zokner in Literatura do ContinenteO Estado do Paraná, Curitiba, 24 de novembro de 2002

22 de setembro de 2002

O poema no muro

            O poema foi gravado no cimento. Em seis blocos que estão dispostos na frente da casa de Pablo Neruda, na rua Márquez de la Plata, 0192, “La Chascona”. Tem por título “Pido silencio” e as estrofes, feitas de um número desigual de versos, relacionam suas últimas vontades. Primeiro, se dirigindo a interlocutores, num pedido ou numa ordem: Agora me deixem quieto,/ Agora se acostumem sem mim. Logo, explicando o que vai fazer: fechar os olhos e anunciar os seus desejos. Eles são cinco: o amor sem fim, ver o outono, o inverno, o verão e os olhos de Matilde. O primeiro desejo, algo definitivo que prescinde de palavras, cabe numa estrofe de um só verso. O segundo, o terceiro e o quarto desejos remetem às estações do ano no que elas contém de suas, talvez, antigas emoções: o viver a renovação do ciclo da vida (como posso ser sem que as folhas/ voem e voltem à terra), a lembrança da chuva (meu único personagem inesquecível foi a chuva é a primeira frase de suas memórias), o verão que olhos infantis percebem redondo como a melancia. O quinto desejo é formulado, outra vez, para um interlocutor, porém, desta vez, para um interlocutor definido, não apenas pelo nome, Matilde, mas, também, pelo seu significado, expresso no possessivo e no adjetivo que lhe seguem o nome: Minha, bem-amada. Um desejo de posse que ele precisa explicar – não quer dormir sem os seus olhos, não quer existir sem o seu olhar. Esse olhar de olhos cor de lua, de olhos que voam e dão luz às coisas como janela aberta, assim definido pelo poeta em versos de Cien sonetos de amor e, tão valioso, que se dispõe, por ele, trocar a primavera. Como antes, no tempo dos cem sonetos, quando tudo perdia sentido – os livros,/ a amizade, os tesouros acumulados,/ a casa transparente [...] que eles construíram juntos – menos os seus olhos. Igualmente, precisa explicar o porquê desse pedido de silêncio que não se deve, diz, a sua morte próxima, pois o tempo que viveu o seduz tanto que outro tanto ele almeja viver: Nunca me senti tão sonoro/ Nunca tive tantos beijos. E, se ocorre pensar ser um dia esquecido, deixa perpassar, nesses versos, a certeza da eternidade, possível no ciclo da vida: [...] dentro de mim crescem cereais,/ primeiro os grãos que rompem/ a terra para ver a luz. Sobretudo, fiel a si mesmo, se declara ser e continuar sendo, quase a repetir o seu dizer num poema de El mar y las campanas sou e estou. E, outra vez, pede. Não mais o silêncio, mas a solidão e a licença para nascer, em expressões que buscam a vida ao almejar a solidão junto com o dia, o nascimento num tornar a existir que as palavras cedo, luz, abelhas, estrelas, semeadas nos seus versos, conduzem com alegria. Surge, então, a palavra amigos, também um interlocutor, afetivamente próximo, para dizer que o que deseja é quase nada e quase tudo. Expressão que rende humilde os seus anseios e desfaz a afirmação primeira, somente quero cinco coisas,/ cinco raízes preferidas, ao confessar que algo, ainda, ficou fora de ser desejado ou obtido, nessa busca do ser humano, sempre a perseguir quimeras. E, se mais ele não diz, encerrando-se no vago e indecifrável desse quase tudo, como que se resigna à solidão ou a ela aspire ao determinar a esses amigos, a quem se dirige, que se podem ir. Pedido que se entrelaça com os primeiros versos em que pede silêncio e paz.
            E a paz lhe faltou nos seus últimos dias de vida. O estar doente, na cama, em Isla Negra, não impediu que lhe revistassem a casa; agravando-se o seu estado, na viagem para Santiago, a ambulância foi obrigada a parar para ser, também, examinada. E no hospital, isolado no seu quarto que os amigos abandonavam cedo para ter tempo de chegar em casa antes do toque de recolher que nesses dias imperava, escutava o barulho dos helicópteros patrulhando a cidade. Sabia o que estava acontecendo no país e das centenas e centenas de mortes que estavam a ocorrer. Seu amigo Volodia Teitelboim, no livro Neruda, diz que ele sentia cada uma dessas mortes e seu coração foi se destroçando e parou. Eram dez e meia da noite do dia 23 de setembro de 1973.


Cecilia Zokner in Literatura do ContinenteO Estado do Paraná, Curitiba, 22 de setembro de 2002

15 de setembro de 2002

A casa do poeta

1973 [..] 11 de setembro: um golpe militar derruba o governo da Unidade Popular; morte do Presidente Salvador Allende. 23 de setembro: morre Pablo Neruda em Santiago do Chile. A opinião pública internacional tem conhecimento, com profundo estupor, de que suas casas de Valparaíso e de Santiago, onde é velado o cadáver, foram saqueadas e destruídas depois do golpe, pelos fascistas chilenos. “Cronologia de Pablo Neruda” em Confieso que vivi.

          Foi escrito em dias de agonia, diz Volodia Teitelboim (Neruda, Editorial Sudamericana, 1996) quando Matilde Urutia já estava sendo consumida pela doença. Durante um ano e meio, o livro foi surgindo, com dificuldade, pois conforme relata José Miguel Varas (Nerudario, Planeta, 1999), embora Matilde Urrutia, contando com o poeta Gustavo Becerra para ajudá-la, rememorasse com invejável memória e a se expressar com fluência, seu rigor levava à verificação de datas, de fatos, de nomes. Em novembro de 1986, com  o título Mi vida junto a Pablo Neruda, o livro foi publicado pela Seix Barral de Barcelona. Em janeiro do ano anterior, morrera Matilde Urrutia.   Sobrevivera doze anos ao Poeta, marcada por duras e cruéis experiências  vividas e pelo que presenciou nesse trágico mundo instaurado no Chile em 11 de setembro de 1973. E o que ocorria não foi suficiente para  fazê-la partir nem para  se negar, quando solicitada mundo afora, a dar depoimentos sobre o que ocorria a seu redor ou  participar em atos políticos contra a ditadura. De uma forma ou de outra, ela, como tantos outros, começou a resistir ainda que, segundo suas palavras, sentindo-se encurralados entre dois medos: o medo de calar e o medo de ser castigada por rechaçar a injustiça. E se o seu livro de memórias, principalmente, é um testemunho sobre a história de amor que viveu com Pablo Neruda, as primeiras seqüências remetem à fatídica data para os chilenos: Tranqüilo amanheceu este dia 11 de setembro de 1973. Um feixe de luz alegre me golpeou o rosto quando abri as janelas. Tranqüilo chegava o mar, tranqüilo estava o céu e um ar tranqüilo balançava as flores do jardim. Enganoso prenúncio para o que pouco depois iria ser conhecido e narrado nos dois primeiros capítulos: a morte e o insólito funeral do poeta. Um registro, sem dúvida terrível, não somente, por dizer do sofrimento físico e moral que marcou os últimos dias de Pablo Neruda, mas também, por se constituir a crônica da covardia e da indignidade dos seus compatriotas que não respeitaram nele um homem gravemente enfermo e tampouco a sua morte. Esses compatriotas que o poeta acreditava serem inimigos da violência, apegados às leis, detestando os derramamentos de sangue e que se mostravam de uma inaudita selvageria.
Muitos foram os que relataram o enterro de Pablo Neruda, impressionante não apenas pela perda que representou a sua morte, mas pela manifestação popular dos que enfrentaram soldados para render-lhe a última homenagem.
Matilde Urrutia também o faz e a partir de seu sofrimento e de sua dor ao ver destruída e saqueada a casa de Santiago, “La Chascona”, em que vivera com Pablo Neruda e onde haviam acumulado verdadeiros tesouros como as peças únicas de cerâmica, feitas especialmente para ele pelas artesãs do sul do país ou a coleção de figuras pálidas e cheias de brilho de um artista polonês, que, em pedaços, se espalhavam pelo chão. Como as peças do grande relógio jaziam pelo jardim assim como, no jardim, jogada, estava a cadeira onde o poeta se sentava para escrever seus versos. Desaparecidos, os quadros naifs do México, da Colômbia, de Samarkand, de Bujara, de Coronel, de Talcahuano e os vidros da casa, todos, quebrados. E as portas, todas, arrancadas. E as flores e as plantas que ao longo dos anos ela havia cultivado, destruídas, todas.    
Ainda nesse ano de 1973, quando escrevia suas memórias, no capítulo “Cristales rotos”, Pablo Neruda constatava: É verdade que o mundo não se limpa da guerra, não se lava do sangue, não se corrige do ódio. É verdade.

Cecilia Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná, Curitiba, 15 de setembro de 2002

7 de julho de 2002

Ausência

Sem que eu me lembre disso, sem saber que a olhei com meus olhos, morreu minha mãe, dona Rosa Basoalto. Eu nasci no dia 12 de julho de 1904 e, um mês depois, em agosto, esgotada pela tuberculose, minha mãe já não existia. Pablo Neruda.
Confesso que vivi.
           
Em 1980, a Seix Barral de Barcelona, publicou El rio invisible, a poesia e a prosa dos primeiros anos de Pablo Neruda, livro que abriga a única fotografia de sua mãe, Rosa Basoalto de Reyes, morta dois meses e dois dias depois de seu nascimento. Entre os poemas que fazem parte desse livro, dois lhe são dedicados e, embora, possam ser ingênuos, segundo expressão de Volodia Teitelboim (Neruda, Editorial Sudamericana Chilena, 1996), trazem bem forte a presença do inconfundível lirismo que nunca deixará de marcar a sua poesia. Um dos poemas tem por título “Luna”: Cuando nací mi madre se moría / con una santidad de ánima en pena. / Era su cuerpo transparente. Ella tenía / bajo la carne un luminar de estrellas./ Ella murió. Y nací. Por eso llevo/ un invisible río entre las venas, / un invencible canto de crepúsculo / que me enciende la risa y me la hiela. No primeiro verso, como mais tarde e, tantas vezes, contará a sua história que se inicia  sob o signo trágico da orfandade. Nos três seguintes, o querer esboçar um perfil cuja visão lhe foi negada, o leva a uma idealização em que as expressões santidade, corpo transparente, luz de estrelas traduzem uma singeleza que o trágico signo – morrer/nascer – irá amenizar tanto quanto os versos  seguintes em que os recursos estilísticos anunciam o domínio da palavra que estará, sempre, a serviço de uma visão de mundo, submissa aos sentimentos e as paixões. Porque, se nos primeiros versos fala da imagem da mãe que ele próprio constrói a partir do nada, nos quatro últimos, irá dizer do seu sofrimento diante da ausência. Volta-se para si mesmo e se refere a esse rio invisível que lhe corre nas veias que, talvez, numa linguagem metafórica, signifique a imensidão de lágrimas a serem vertidas e a esse canto pleno da tristeza de um fim do dia. E o último verso do poema, como a síntese de um soneto na confissão barroca, contraditória, de um riso que se expande e que se gela: alegria possível de existir como passível de ser destruída.
            “Humildes versos para que descanse mi madre” traduz, na primeira palavra do título, a timidez do poeta, quiçá, a se achar indigno de seu tema. Inicia o seu verso com o vocativo, Madre mía, num desejo de diálogo que o destino determinou impossível: Madre mía, he llegado tarde para besarte / y para que con tus manos puras me bendijeras; / ya tu paso de luz iba extinguiéndose / y habías comenzado a volver a la tierra. / Pediste poco en este mundo, madre mía./ Talvez este puñado de violetas mojadas / está de más entre tus dulces manos / que no pidieron nada. Dirige-se a ela, no lamento impotente do gesto que não se realizou, dos bons augúrios que teria almejado receber. Sujeita-se à realidade do seu desaparecimento e, outra vez, busca o diálogo no vocativo madre mía que se repete, agora, penalizado com esse quase nada que a vida lhe deu, imaginando uma interlocutora que apenas existe na sua emoção.
            Muitos anos mais tarde, Pablo Neruda volta ao lugar em que nasceu em busca de alguma lembrança que de sua mãe tenha ficado, de alguma história que sobre ela alguém possa contar. Uma velha vizinha, que a havia conhecido, lhe revela uma ou outra coisa e diz que ela adorava poesia, que passava muitas horas a ler. E lhe oferece a fotografia que, pela primeira, vez revela ao poeta a imagem de sua mãe. Volodia Teitelboim que o acompanhava nessa volta às origens, testemunha: Ele olha comovido o pobre âmbito doméstico. Recorre a desmantelada e empoeirada casa provinciana onde nasceu. É uma chave enferrujada para penetrar nas suas origens.


Cecilia Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná, Curitiba, 7 de julho de 2002

30 de junho de 2002

Os clandestinos. II Canto General

           O mundo dos negócios explica, hoje, que a produção de um filme possa ter dois ou três países como financiadores e que a edição de um livro possa ocorrer, simultaneamente, em dois, três ou mais países numa política editorial que, poucas vezes, leva em conta a qualidade e sim, antes de mais nada, o lucro.
No entanto, foi em 1950 que se deu, no dizer de Emir Rodriguez Monegal (El viajero inmóvil, Buenos Aires, Losada, 1966) um lançamento editorial latino-americano de tal importância como poucos livros o tiveram: no dia 3 de abril, resultado de uma subscrição, assinada pelas personalidades mais destacadas do mundo hispânico, na cidade do México, veio à luz o Canto General numa edição ilustrada por Diego Rivera e David Alfaro Siqueiros. Logo aparece outra, em fac-símile que, posta a venda, foi um êxito notável. Três anos antes, em abril de 1947, haviam sido realizadas no Chile eleições municipais cujos resultados mostraram uma expressiva presença do Partido Comunista, partido que dera apoio a González Videla para elegê-lo Presidente. Ele, então, havia dito: Não haverá força humana nem divina que possa me separar do Partido Comunista. Mas, com o resultado, que não previra, a contrariarem seus novos acordos, não podia aceitar, diz Volodia Teitelboim no seu livro Neruda (Santiago, Editorial Sudamericana Chilena, 1996) que os comunistas viessem a se constituir, através das urnas, um grande partido. Na verdade, é sabido que já havia negociado com os norte-americanos do presidente Harry Truman os destinos dos comunistas. Logo, passou a perseguir Pablo Neruda que o ajudara na campanha, como Chefe do Comitê Nacional de Propaganda, quando então, testemunhara as suas promessas de reformas sociais. Dominado pelo humilhante sentimento de ter sido atraiçoado, o Poeta escreve “Carta íntima para milhões de homens”, publicado pelo jornal El Nacional de Caracas.
            González Videla, com o argumento de que a publicação dessa carta no estrangeiro é um abuso de quem usufrui da imunidade parlamentar, pede a destituição de Pablo Neruda de seu cargo de Senador da República. Apesar da licença para se ausentar do país que lhe concede Arturo Alessandri, Presidente do Senado, no dia 3 de fevereiro ele é destituído de suas funções o que o torna um cidadão comum, passível de ser preso. Efetivamente, dois dias depois, o Tribunal de Justiça ordena a sua detenção. A partir desse momento ele deve se esconder para evitar a prisão e passa a viver na clandestinidade, ajudado por amigos e por correligionários e, às vezes, por pessoas que nem conhece. A síntese desse peregrinar é dada por Volodia Teitelboim: uma lei da clandestinidade prescreve que não se pode permanecer muito tempo numa casa. Teve que mudar. Foi de casa em casa, todas humildes, nelas todos guardavam o segredo. [..]. Ele entrava de repente sem conhecer ninguém e era recebido como irmão. E de esconderijo em esconderijo, Pablo Neruda vai escrevendo os poemas do Canto General. Mais tarde, ele irá contar: foi escrito na sua maior parte em dias de perseguição e dificuldades. Eu não estava na prisão mas era difícil escrever sem ter comunicação com ninguém. Dezenove dias depois de tê-lo terminado, cruza, a cavalo, a Cordilheira dos Antes, rumo à fronteira da Argentina, levando seu manuscrito sob um rótulo falso. Atrás de si, expondo-se às perseguições policiais, ficaram aqueles que deveriam realizar a tarefa de publicar o Canto General, no Chile. Eram tempos em que a polícia estava à caça da propaganda clandestina. Tinha a lista de todas as imprensas e podia descobrir a origem de uma publicação através da tipografia usada, relata Volodia Teitelboim. Mas não foi essa uma razão suficiente para impedir a edição, apresentada como se tivesse sido feita no México, de cinco mil exemplares.
            Um deles, chegará às mãos de Pablo Neruda, em Paris, onde chegara fugitivo, também a viver escondido. Ao lhe ser concedida a permissão para uma permanência legal no país, ele pôde se apresentar no Congresso Mundial de Partidários da Paz que se realizava com a presença dos mais prestigiados intelectuais da época. No dia 25 de abril de 1949, quando do seu encerramento, lê, dessa edição chilena clandestina, “Um canto para Bolívar”.
            Para o poeta e para os poemas do Canto General acabavam-se os dias de clandestinidade.


Cecilia Zokner in Literatura do ContinenteO Estado do Paraná, Curitiba, 30 de junho de 2002

23 de junho de 2002

Os clandestinos. 1 Los versos del capitán

Pablo Neruda como todo poeta lírico gosta de retratar-se em sua poesia, retocando apenas alguns perfis e embaralhando, ironicamente, muitos dados objetivos. Mas, a dupla ação de indiscretos admiradores e curiosíssimos inimigos o forçaram a confessar-se ou  a mascarar-se mais de uma vez, provocando, assim, novos problemas a todas as análises críticas de sua poesia e sua vida. Emir Rodriguez Monegal.

Disse uma vez Mejia Baca, um editor peruano que amava o seu ofício, ser lamentável que num tempo em que os homens chegaram à Lua, o itinerário de um livro, saído de uma cidade do Pacífico, levasse meses para chegar à outra, situado no Atlântico. Um caminho tão intricado como o do livro de qualquer país do Continente para chegar a outro, pois, em relação ao comércio livreiro, as fronteiras se revelam muito difíceis: se não existem informações quanto ao que foi editado, tampouco, na velha tradição do subdesenvolvimento de deixar a correspondência sem resposta, raramente os pedidos são atendidos. Situação que certamente se agrava, quando se trata do Brasil. Ao se submeter às apreciações críticas do Hemisfério Norte que lhe orientam as traduções, são bem poucos os autores latino-americanos publicados e a Literatura dos países da América Latina continua sendo desconhecida do leitor brasileiro. Mesmo de um Prêmio Nobel, como Pablo Neruda, poucos foram os títulos e poucas as obras sobre ele ou sobre a sua poesia que atraíram a atenção das editoras.
            Volodia Teitelboim que, em 1984, publica, segundo a sua editora, a Sudamericana Chilena, a mais completa, amena e compenetrada biografia de Pablo Neruda, relaciona uma infinidade de estudiosos da obra do poeta, cujos trabalhos não chegaram ao Brasil. Assim, estudar Pablo Neruda sem condições de conhecer o que sobre ele e sobre a sua obra já foi dito, pode levar à interpretações equivocadas ou a desnecessárias repetições. Um risco inevitável que, se enfrentado, se justificará como tentativa de povoar o vazio que envolve a sua figura e a sua obra no Brasil. Figura e obra que, muito mais que em outros poetas, não permite sejam dissociadas, porque seus poemas têm ou uma razão ou um momento ou uma história, geralmente, muito precisos que, embora, não possibilitem tudo esclarecer, conduzem a uma aproximação maior dos seus sentidos poéticos. Longo, provocador e instigante o caminho percorrido por Los versos del capitán, no dizer de seu autor, entre os seus livros, um dos mais controvertidos. Foi publicado, pela primeira vez, no ano de 1952, em Nápoles, numa edição clandestina, em belo papel e impresso em tipos Bodoni e com ilustrações do pintor Paolo Ricci, em cinqüenta exemplares que se constituem, hoje, uma raridade bibliográfica. No ano seguinte, sai pela Losada de Buenos Aires que, ainda o publicou, anônimo, outras vezes. E, somente, em 1963 é que o livro foi reconhecido, como seu, por Pablo Neruda que, todavia, no Prólogo, então acrescentado, não revelou a causa que o levara a publicá-lo anteriormente sem o seu nome. Causa esta que apenas será conhecida quando suas memórias, Confieso que he vivido, vem à luz, em 1974: A verdade é que não quis, durante muito tempo que esses poemas ferissem a Delia, de quem me separava. Delia del Carril, passageira suavíssima, fio de aço e mel que prendeu minhas mãos nos anos sonoros, foi para mim durante dezoito anos uma exemplar companheira. Este livro, de paixão brusca e ardente, ia ser como uma pedra lançada sobre a sua terna estrutura. Foram essas e não outras as razões profundas, pessoais, respeitáveis do meu anonimato. Bem mais tarde, alguns detalhes serão contados pelos amigos, cuja convivência com o poeta permitiu fossem conhecidos. Mencionado, brevemente, por Volodia Teitelboim, o seu temor e dos que rodeavam Pablo Neruda, diante dos pretensiosos descobridores eruditos desentranhadores de estilo assaz indiscretos que proclamavam a viva voz diante da mulher por quem o livro tinha sido publicado sem o nome do pai que ele era o autor desse livro que anunciava o amor por outra mulher. E lembra um entardecer em Goiânia, perto do lugar onde será erguida Brasília, em que o poeta discute com o seu interlocutor que se vangloria de saber que era ele,Neruda, e não outro, o autor do livro anônimo, enquanto Delia del Carril, embora dissimulando um ar ausente, era a imagem da mulher sozinha e prostrada. Pablo Neruda não queria abandoná-la ao se ligar a Matilde Urrutia e durante sete anos viveu, então, uma vida dupla, compartilhando o teto conjugal com Delia e o leito com Matilde. Somente a vingança de uma empregada, que atendia as duas senhoras em Isla Negra, onde o poeta levava ora uma ora outra,  provocou o desenlace: a separação de Delia del Carril, em 1955. Pablo Neruda passou a viver, às claras, com Matilde Urrutia, a musa dessa escrita sem censura em que, diz Volodia Teitelboim, o poeta escondia o rosto para, ingenuamente, deixar a descoberto a alma.
            Uma alma tão cheia de veemência que, em cada um dos poemas de Los versos del capitán se expandia, fazendo emergir a identidade que o poeta queria esconder, tanto quanto desejava dizer ao mundo do amor que sentia por Matilde Urrutia.


Cecilia Zokner in Literatura do ContinenteO Estado do Paraná, Curitiba, 23 de junho de 2002

26 de maio de 2002

Manuela Sáez. I

Manuela, brasa e água...
Dos versos de Pablo Neruda
           
No seu livro Neruda, publicado na Espanha em 1984 e reeditado na Argentina, Cuba e Chile, Volodia Teitelboim, além das detalhadas referências às circunstâncias biográficas do poeta com que, na condição de íntimo amigo, conviveu durante quarenta anos, comenta, muitas vezes, os seus poemas. Ou revelando-lhe os motivos, o momento de sua gênese ou em análises que demonstram o estudioso da obra nerudiana nos abundantes artigos e ensaios que lhe dedicou.
           No capítulo 132, “Uma heroína esquecida”, se refere à viagem de Pablo Neruda a bordo do Itália, em janeiro de 1958, mencionando breves linhas de uma carta que o poeta, nessa ocasião, lhe escreveu e em que diz estar a escrever conferências e um longo poema sobre Manuelita Sáez, a amada de Simão Bolívar. No porto de Paita, pequeno povoado da costa peruana, breve escala do navio, ele desembarca e procura pelo seu túmulo. Ninguém sabe dela, ou do lugar em que repousa. Essa busca vã e o querer redimi-la do olvido são expresso em “A insepulta de Paita”, parte de seu livro Cantos cerimoniales, publicado em 1961, pela Losada de Buenos Aires.
           O poema é feito de um Prólogo e de vinte e duas estrofes de estruturas diversas quanto ao número de versos (a décima, por exemplo tem apenas três; a vigésima segunda, cinqüenta e quatro) e quanto à forma (ora narrativo, ora descritivo, ora confessional). O seu começo é como se fora uma narrativa da viagem que se inicia em Valparaíso e se faz num Pacífico, duro caminho de punhais. Na segunda estrofe, presente esse espaço, Paita, que abriga a mulher morta e o desejo do poeta de tocar a terra que a esconde. Pelas suas palavras, desenha-se o povoado nas balaustradas velhas, nas sacadas azuis; eleva-se o seu cheiro de perfume audaz; ostentam-se as frutas, vislumbram-se as índias sentadas sob o zumbir das moscas e o dia nublado. Nem o menino, nem o homem, nem o ancião interrogados, respondem onde havia falecido Manuelita, onde tinha sido a sua casa, onde finalmente, repousava.E, nem os montes, o manancial, o rio e o mar, também interrogados, nada lhe respondem. Mas, o poeta, se não encontra o lugar em que Manuelita Sáez se abriga (tu que não tens um túmulo), a faz renascer num desenho que lhe traça o corpo de delgados pés espanhóis, de pequena mão morena, de cadeiras claras de cântaro de cabelos negros e seios de magnólia. E lhe retrata a alma: libertadora enamorada, suprema flor empunhada pela ternura e a dureza, guerrilheira, libertadora, contrabandista pura, idolatrada desrespeitosa. E lhe define o destino de sepultada em plena vida, insepulta bravia, corola destroçada pela areia e pelo vento, forma calada pelo pó de Paita. Paita que ele torna a descrever, incrustada na costa, com seus cais podres, suas escadas quebradas, seus fardos de algodão, suas casas abandonadas, seus paredões rotos onde alguma bouganville/ lança na luz o jato/ de seu sangue vermelho. Paita, povoada de silêncio, De todo o silêncio do mundo e escolhida por Manuela Sáez como lugar de seu exílio. E o poeta não compreende e quer saber e pergunta e torna a perguntar o porquê da escolha dessa terra miserável, dessa luz desamparada, dessa sombra sem estrelas, desse lugar onde morrer. Tampouco obtém respostas, tampouco encontra a lápide de Manuelita Sáez: Manuelita insepulta, /desfeita nas atrozes, duras /soledades.
            E seu barco se afasta de Paita que ficou perdida nas suas areias, para o esquecimento.
            Nas vinte e duas estrofes que lhes dedica, os versos que falam do mar navegado, de paisagens desoladoras, das frutas do mercado de Paita, de exílios e de escolhas de amores perdidos, de imagens fugazes. Falam do anseio do poeta em decifrar esse enigma em que se transformou Manuela Sáez nos dias de exílio e que a escondem do mundo. Por isso, desembarca em Paita e lhe persegue a figura ausente. A perplexidade diante do vazio, a evocação apaixonada da figura feminina e o anseio de que seus ossos tenham nome se entrelaçam no sentir do poeta e fazem de sua romaria, nesse povoado perdido uma cerimônia que o seu canto imortalizou.

Cecilia Zokner in Literatura do ContinenteO Estado do Paraná, Curitiba, 26 de maio de 2002

27 de janeiro de 2002

As invenções

            No prólogo ao livro Nerudario (Santiago, Planeta Chilena, 1999) de sua autoria, José Miguel Varas resolve suas dúvidas – como escrever sobre momentos da vida de Pablo Neruda que presenciou, sem correr o risco de ser tido como um aproveitador das glórias do poeta? –, citando as palavras do escritor Carlos Martinez Moreno: Porque Neruda derramava incontidamente sua amizade como seus versos e ter dela desfrutado não significa de modo algum tê-la merecido. Assim, nos diferentes capítulos de Nerudario, a lembraros ditos de Pablo Neruda, suas tiradas trocistas, as brincadeiras com que se divertia, a paixão pelos livros e por incunábulos, manuscritos, caracóis, antiguidades, freqüentemente, aparecem os testemunhos que o mostram imensamente solidário para com os amigos e de uma ingênua prodigalidade ao gastar em “contas de hotel e dinheiro de bolso de numerosos chilenos e chilenas pouco solventes que vagavam pela Europa – poetas, estudantes, pintores, cineastas, músicos ou qualquer outra coisa – procurando a arte, o amor, a revolução. Nesses testemunhos, também, as emoções que desabrocham diante de um presente recebido ou se dissolvem no desalento de um esperado encontro com amigos que não se concretiza. Delineia-se, então, um perfil instigante, por vezes comovedor e do qual não estão ausentes  algumas joviais travessuras que o tornam  inexpugnável às incursões crítico-interpretativas nem sempre muito conseqüentes. Daí, o valor de certas informações. Por exemplo, a que dá a chave de uma estrofe nerudiana, a penúltima do poema “Botânica”, da sétima parte do Canto General.  José Miguel Varas elucida o mistério que já havia tentado a muitos estudiosos diante de seu sentido simplesmente circunstancial e a confundir, no seu hermetismo divertido, os exegetas e os críticos de seus versos. Conhecedores de poesia e de botânica, diz José Miguel Varas, muitos se aventuraram, amplamente, buscando achar o seu significado obscuro no meio de um poema sem segredos, indagando-se qual seria a relação entre o paico, espécie vegetal, cuja infusão é aconselhada para a dor de estômago, com lâmpadas, desamparo, noite e mar?  Uma vez que o Poeta não se referia à planta aromática que nasce nos campos do Chile, mas a um de seus amigos, cujo apelido era El Paico, preso numa pequena ilha, durante um passeio feito em tarde tormentosa e que se havia posto a fazer sinais, com um velho farol, para ser resgatado, qualquer conclusão a que chegassem os estudiosos estaria longe do que, na verdade, quis dizer. Certamente, uma brincadeira do Poeta, transparente, apenas, para uns poucos iniciados o que o diverte muito, pois como relata, também José Miguel Varas, ele nunca esteve disposto a esclarecer o sentido de seus versos. Quando Margarita Aguirre, autora de Genio y figura de Pablo Neruda, publicado em 1964, pela Editorial Universitária de Buenos Aires, obra considerada, por alguns, como a melhor e mais vibrante biografia do Poeta, lhe perguntava sobre a gênese de seus poemas ou sobre o significado de certos versos misteriosos ou herméticos, Pablo Neruda jamais lhe esclarecia o que quer que fosse, dizendo que os críticos, como Amado Alonzo, viam na sua poesia coisas que ele ignorava e que alguns de seus achados o deixavam perplexo. E, diante das investidas desesperadas da sua biógrafa, recomendava: Invente, comadre, invente.
            São histórias que remetem, exemplarmente, às teorias e métodos aplicáveis às aproximações de textos literários. Quase sempre, tais teorias e tais métodos se originam da produção oriunda dos países irradiadores de cultura o que lhes confere irrefutáveis qualidades; e, também, quase sempre são usadas em obras pertencentes a um hemisfério que apenas, de longe, se assemelha aos universos nos quais procura se mirar. Trilhas que levam às explicações, elucubrações e interpretações que, embora respaldadas por impecáveis embasamentos teóricos, podem resultar fantasiosas ou vãs, como o revelam as palavras de José Miguel Varas sobre o poeta e seu relacionamento com o mundo a descobrir algo de seus segredos e de seu poetar.
Cecilia Zokner in Literatura do ContinenteO Estado do Paraná, Curitiba, 27 de janeiro de 2002