entregarei a ti a minha
vida enquanto viva/ e quando morrer
te darei a minha morte.
Em 1963, o compositor chileno
Sergio Ortega, hoje residindo na França, compôs a música para a peça Romeu e
Julieta, traduzida por Pablo Neruda e que era montada em Santiago do Chile.
O poeta gostou muito do sentido popular e
comunicativo que essa música possuía, o que o levou a sugerir ao compositor
que trabalhassem juntos na elaboração de uma obra de teatro: Fulgor y muerte
de Joaquín Murieta. O resultado foi uma cantata que estreou no dia
14 de outubro de 1967 e se constitui a única obra de Pablo Neruda para o
teatro. Três textos a antecedem: um deles, tirado do livro Viajes de
Benjamin Vicuña Mackena, publicado em 1856 e que menciona o cemitério de
São Francisco onde, numa centena de lápides pobres, os epitáfios contam a
história da Califórnia, feita de fome, assassinatos, tristezas, naufrágios e
vinganças e da qual não estiveram ausentes os chilenos. Igualmente, breves, os de Pablo Neruda. Num deles, rotula a
sua obra de trágica, mas também, em parte, escrita de brincadeira. Quer ser um
melodrama, uma ópera e uma pantomima. Daí sugerir ao diretor que a fará
representar que invente situações ou
objetos fortuitos, traje e decorações.
No outro texto, com o título de “Antecedências”, fala sobre o personagem que dá
o nome à peça e que ele considera, não como um bandido, mas como um rebelde:
Joaquín Murieta, um domador de cavalos que, juntamente com outros chilenos,
parte de Valparaíso, em mediados do século XIX, atraído pelo ouro da Califórnia.
Durante a viagem, conhece Teresa com quem se casa e vive um idílio muito breve,
porque, logo ao chegar aos Estados Unidos, ela será violada e morta por um
grupo de homens que, estando ele ausente, lhe invadem a casa. Joaquin Murieta
se tornará um chefe bandoleiro, cuja vida será posta a prêmio pelo governo
norte-americano, disposto a pagar cinco mil dólares por sua cabeça. E sua
cabeça cortada, diz Pablo Neruda, reclama essa cantata que ele, então, escreve,
não apenas como uma oratória insurreta mas,
também, como um certificado de nascimento, pois seus papéis de identidade se
perderam nos terremotos e nas lutas pelo ouro.
No teatro, onde se apagam todas as luzes, se
eleva a voz do poeta, anunciando a história de seu compatriota, o honorável bandido dom Joaquín Murieta.
É o “Prólogo” para os seis quadros em que a voz do Poeta se fará ouvir mais
cinco vezes para, juntamente com outras vozes – exclamações, queixas, coros,
cantos – tirar do esquecimento a figura de Joaquín Murieta e seu destino. O
quadro segundo, “A travessia e a boda”, tem início na ponte do navio, com as
vozes de um quarteto que relatam o encontro e o casamento de Joaquín Murieta
com Teresa: e na primavera marinha, Joaquín, domador de cavalos, tomou
por esposa à Teresa, mulher camponesa. A seguir, uma canção masculina
retoma o desafio da busca do ouro e o coro feminino exprime a tristeza de
deixar a pátria e os presságios de má fortuna o que é quebrado pelo diálogo
jocoso entre dois chilenos. Novamente, a canção masculina que cessa diante da
voz do poeta a pedir silêncio para a lua de mel de Joaquín Murieta e de Teresa.
Todos se retiram de cena, levando o dedo aos lábios. Diminuem todas as luzes do cenário. Céu intenso. Noite estrelada. O
cenário vai-se apagando e as estrelas começam a se tornar maiores até se
converterem em imensas flores de luz. Somente se vê uma pequena janela
iluminada de onde saem a Voz de Joaquín Murieta e a Voz de Teresa. Escuta-se
o barulho do mar. E o título “Diálogo amoroso”, anuncia a luminosa expressão de
amor.
Nas primeiras estrofes, o desejo
de se desvendar (sou camponesa de
Coihueco, sou um homem sem pão nem poder). Logo, o amor
irá conduzir os versos que os delineiam nesse desejar que se entrelaça no
outro: Murieta a encontrar no ouro razão para defender a amada (Agora quero o ouro para o muro / que deve defender a tua beleza); Teresa, só a
querer o que do amado possa advir (Só
quero o baluarte de tua altura / e só quero o ouro de teu arado). E nos
recursos do poeta, as metáforas (pela boca da amada sente o chamado da
aveleira¸ percebe no seu cabelo o perfume das montanhas) e as comparações (os
braços da amada são como os alelis de
Caranpangue; sua voz corre como a
água em movimento) revelam a ligação de Joaquín Murieta com a natureza. De
seus elementos lhe vem o que aprendeu (Quanto
conheço o aprendi da água, do vento, das coisas mais simples) e a aceitação de ignorar o que é impossível saber: perguntar ao amor é coisa rara, / é perguntar cerejas à Cerejeira. Todo um
universo de sensações arraigadas no passado, renovadas pelo amor que o inunda e
no qual se confundem a mulher e a terra natal: Beijo a minha terra quando a
ti te beijo.
Um ritual efêmero de passageira alegria que logo dará lugar
às palavras de esperança de Teresa a almejar o retorno à pátria e à certeza de
Joaquín Murieta: O ouro é o regresso.
Esperança e certeza que não irão se cumprir, pois eles estão fadados à morte em
terra alheia e sob o signo da covardia. Fado que Teresa, talvez, tenha
pressentido quando, nos versos do poeta, entrega a sua vida a Joaquín Murieta e
também a sua morte.
Cecilia
Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná,
Curitiba, 9 de julho de 2003