Divisão dos Arquivos

O Blog Pablo Neruda Brasil está apresentado em quatro seções obedecendo à data de publicação da matéria:

Arquivo Cecilia Zokner

Os breves textos sobre a poesia de Pablo Neruda foram publicados sob a rubrica Literatura do Continente no jornal O Estado do Paraná, Curitiba e fazem parte, juntamente com outros textos versando sobre Literatura Latino-americana, do Blog http:\\www.literaturadocontinente.blogspot.com.br. Os demais, em outras publicações.

Arquivo Adriana

Chilena de Concepción, amiga desde 1964, quando convivemos em Bordeaux, ao longo dos anos me enviou livros e recortes de jornal sobre Pablo Neruda. Talvez tais recortes sejam hoje, apenas curiosos. Talvez esclareçam algo sobre o Poeta ou abram caminhos para estudos sobre a sua obra o que poderá, eventualmente, se constituir uma razão para divulgá-los.

Arquivo Delson Biondo

Doutor em Literatura na Universidade Federal do Paraná. No ano do centenário de nascimento de Pablo Neruda, convidei Delson Biondo, meu ex-aluno do curso de Letras para trabalharmos sobre “Las vidas del Poeta, as memórias de Pablo Neruda”, constituídas de dez capítulos, publicados, em espanhol, na revista O Cruzeiro Internacional, no ano de 1962. Iniciamos o nosso trabalho com a sua tradução, visando divulgar, no Brasil, esse texto do Poeta que somente anos mais tarde iria fazer parte de seu livro de memórias Confieso que he vivido. Todavia, várias razões impediram que a tradução fosse publicada no Brasil, mas continuamos a trabalhar sobre “Las vidas de Poeta” no que se referia aos aspectos formais comparativamente a esses mesmos textos que passaram a fazer parte de Confieso que he vivido. Além desse estudo comparativo, pretendíamos nos aproximar, minuciosamente de cada um dos capítulos de “Las vidas del Poeta”. A comparação foi realizada e o estudo do primeiro capítulo concluído. Estávamos já, terminando a redação do estudo do segundo capítulo quando Delson Biondo veio a falecer em maio de 2014. Assim, as notas comparativas dos textos nerudianos e o estudo do segundo capítulo de “Las vidas del Poeta” não foram concluídos. Penso que a eles nada devo acrescentar.

Arquivo Aberto

Arquivo Aberto à recepção de trabalhos escritos em português ou espanhol que tratem da obra de Pablo Neruda, obedeçam às normas da ABNT e sejam acompanhados de um breve curriculum do autor. Os trabalhos poderão ser enviados para publicação neste Blog pelo e-mail pablonerudabrasil@gmail.com.

30 de setembro de 2001

Fim de festa


                                                   Meu dever é viver, morrer, viver.
                                                                                                          Pablo Neruda

            Em 1969, dois anos antes de receber o Prêmio Nobel, Pablo Neruda publicou, pela Losada de Buenos Aires, Fin de mundo. Além do que o poeta intitula “Prólogo”, constituído de um poema, a coletânea é feita de onze partes. São poemas que falam da solidão, da incompreensão dos homens, suas traições e mentiras, da incomunicabilidade que os desune, de seus desterros e sofrimentos e morte. Da violência da natureza – o mar a invadir a terra, a terra a explodir na cratera de um vulcão – e da água, do vento, da terra, dos animais. Do amor e da morte, de suas relações com o mundo e com seus poemas. Entre eles, os que justificam o título Fim de mundo,
exprimindo as inquietudes diante de um tempo que ele sente carregado de negros presságios, em acorde com o  já acontecido no século XX que  chama o século da agonia.  Nos primeiros versos, indaga sobre o momento em que vive, se nele haverá uma escolha entre a revolução e a mentira patriarcal. Mas, logo lhe vem a certeza da agonia que se instaura na busca da verdade e da paz; do medo em falar o que é passível de comprometer; das vítimas dos calabouços e dos fornos crematórios; da ânsia de fugir da Bomba (homens, insetos queimados ) e da vergonha de ser homem igual ao desintegrador e ao calcinado. E, na convicção de que os países continuam fabricando ameaças e guardando-as no armazém da morte, novamente, uma pergunta: E outra vez, outra vez / Até quando outra vez? Porque Pablo Neruda não esquece a Primavera de Praga (a neve salpicada pelas feridas dos mortos), a Guerra da Espanha (os punhais deixaram um milhão de ausentes), a Segunda Guerra Mundial (um milhão entrava por um forno e se convertia em cinza), as Guerras coloniais (com as colônias rebentando / como negras frutas podres / na escravidão do suor), a Guerra do Viet Nam (a quebrar todos os cristais, / a queimar crianças com napalm), a morte do Che (O comandante terminou / assassinado num barranco) e de Bem Bella, Bem Barka, Lumumba, condenados por verdugos invisíveis.

            Tampouco esquece as vítimas anônimas que desapareceram deixando no mundo um sapato queimado, um brinquedo, um chapéu caído. E no tristíssimo  século, o século dos desterrados, o século pardo ,  o século que faz cem anos / a picotar olhos feridos / com suas ferramentas de ferro / e suas garras condecoradas, ainda que, se permitindo dizer do amor, da amizade, da sua meninice, da ternura para com as coisas, da feitura de seus versos, lhe seja imprescindível o testemunho: Eu contei as mãos cortadas / e as montanhas de cinza / e os soluços separados / e os óculos sem olhos / e os cabelos sem cabeça.  E, assim, não cala diante desse mundo indesejável e virulento.

            Por vezes, dele foge o poeta, a se refugiar em sonhos e fantasias: corre atrás de um relâmpago, deseja ser em oura vida uma gota vermelha do mar ou deseja viver, entre as pedras, ao lado de uma lagartixa. Breves e efêmeras tréguas pois, ao buscar-se a si mesmo acaba, sempre, de volta ao mundo dos homens.

Não nos façamos ilusões
nos aconselha o calendário,
tudo continuará como antes
a terra não tem remédio:
em outras regiões celestes
há que procurar alojamento.


 Cecilia Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná, Curitiba, 30 de setembro de 2001

23 de setembro de 2001

O enterro do poeta

            Isabel Allende o chama, simplesmente, de Poeta mas, ao mencionar-lhe a casa, perto do mar, e a paixão pelas coleções e os versos que não concluiu é como dizer-lhe o nome neste  primeiro romance que publicou, La casa de los espíritus (1982).   A narrativa que abarca os princípios do século XX e se estende até os primeiros tempos da ditadura chilena, instaurada em 1973, nos dois últimos capítulos do livro, “O terror” e “A hora da verdade”, relata o destino dos personagens no dia desse primaveril mês de setembro em que foi dado o golpe militar e nos longos dias que se lhe seguiram. E fazem constar o que, afinal, não foi um segredo para o mundo, os atos arbitrários, as prisões, as brutalidades, as torturas, as traições, os ridículos, as perdas, as covardias, a especulação, a euforia inconsciente. Também, a agonia do Poeta e a sua falta de vontade em continuar a viver. Morreu no dia 23 de setembro e na sua casa de Santiago,  meio em ruínas pela ação dos vizinhos, como diziam os militares e pela ação dos militares, como diziam os vizinhos,  foi velado por uns poucos pois seus amigos estavam prófugos ou exilados ou mortos. E foi um pequeno cortejo que acompanhou o caixão, simples, de madeira, coberto de flores, caminhando lentamente, entre as duas filas de soldados com suas metralhadoras. Em  dado momento do percurso, uma voz gritou o nome do Poeta e, numa só voz, todas as vozes responderam: Presente!Agora e sempre. E se elevaram cantos e consignas proibidas, enfrentado as armas que tremiam nas mãos dos soldados. Ao passar o cortejo fúnebre diante de uma construção, repetindo a homenagem que muitos anos antes, lhe haviam prestado os mineiros de Lota,  descobrindo-se ao ouvir, num comício, o seu nome e o da poesia que iria declamar, os operários abandonaram as ferramentas e, tirando os capacetes, formaram uma fila cabisbaixa. E seus versos, falando de justiça e de liberdade, foram gritados pelos que o acompanhavam até a última morada: um túmulo emprestado, diz a narradora.
            Logo, a ficção retoma o seu curso, enredada no tumultuoso acontecer de um cotidiano sem leis onde se inscrevem  os atos abusivos, os saques, as sevícias, os desaparecimentos, as mortes.  Como se, verdadeiramente, fossem invenções literárias, frutos de fantasia desenfreada a narrativa de  suplícios,  e  a   descoberta de facetas humanas até então insuspeitas, reveladas, uma e outra, na impunidade reinante  e nos benefícios auferidos na era que estava a se impor. Primeiro, o papel que aceitaram muitos, para tornar possível a sabotagem que, programada pelos que haviam sido substituídos no Poder, pretendia a queda do presidente eleito. Donos dos meios de comunicação e de quase ilimitados recursos econômicos e usufruindo da ajuda dos gringos, impediram o abastecimento do país, originando insustentáveis privações. Depois, a compreensão de que não seria  a falta  de um frango na mesa razão para deter a sedimentação do marxismo no país e a conseqüente aceitação de que o único a fazer seria um golpe militar. Quando ele foi dado, como que um toque de mágica transformou  as pessoas. Alba, uma das personagens femininas do romance, se pergunta de onde tinham saído tantos fascistas da noite para o dia porque na longa trajetória democrática de seu país nunca tinham sido notados [..]. E, para eles, como para os convertidos de última  hora,  foi fácil, bater  nos prisioneiros, massacrá-los até o impossível para, então, assassiná-los nos descampados, atirados no chão porque já estavam sem forças para ficar de pé. Ilustrando o procedimento usual em relação aos suspeitos, a prisão de Alba e as sevícias que sofreu. Indivíduos sem uniforme, invadiram a casa, durante a noite,  revolveram tudo ,quebraram, roubaram, atearam fogo sem que o barulho e a fumaça  tivessem alertado um único vizinho.
Sem dúvida, um relato para testemunhar. Como,  o das  breves linhas que registram  os últimos momentos da presença do Poeta sobre a terra.  Elas eludem o seu nome nesse abrigar-se em recursos narrativos como a dizer que só a ficção é passível de dar conta do inverossímil velório e do entrelaçar do medo e da coragem que foi o enterro de Pablo Neruda.
 
Cecilia Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná, Curitiba, 23 de setembro de 2001

1 de julho de 2001

Venho da terra

            É sabido que ao morrer, Pablo Neruda deixou oito livros inéditos de poesia. Mal dois meses se tinham passado desse aziago mês de setembro de 1973, para os chilenos, a Losada, de Buenos Aires, publica El mar y las campanas que, em menos de um ano terá sua edição esgotada. Fazem parte dele, quarenta e nove poemas, muitos dos quais o poeta nem teve tempo de lhes dar um título. Para nominá-los, a editora optou por usar o primeiro verso, ou parte dele, entre colchetes. É o caso de “Yo me llamaba Reyes...” em que Pablo Neruda começa lembrando seu verdadeiro sobrenome, o recebido do pai e abandonado, em 1920, pelo pseudônimo que adotou. Tinha, dezesseis anos e além de seus versos criou, também, como diz Emir Rodriguez Monegal, não somente poesia, mas o próprio poeta, ao perceber-se um homem convicto da vocação que lhe foi outorgada e à qual se submete como é preciso se submeter aos fados: a cumplir con mi tierra y con los mios, como escreverá, mais tarde, em Navegaciones y regresos. Fados que explicarão, nos versos de “Yo me llamaba Reyes...”, um nascimento em meio à pobreza e à derrota: Yo fui depositado / en la hojarasca: / se hundió el recién nacido / en la derrota y en el nacimiento / de selvas que caían / y casas pobres que recién lloraban. E o ter recebido, numa só vez, todos os nomes e todos os sobrenomes – árvores e trigo – que remetem ao desejo que nele sempre existiu, e muitos de seus versos o comprovam: soy el árbol de en enero ou, soy solo tierra de Navegaciones y regresos, Yo soy este desnudo / mineral de Las piedras del cielo, de se constituir parte dos reinos da natureza. Nos versos  de “Yo me llamaba Reyes...”  sua humildade se mostra, como a soberba, verdadeira  e necessária num sentir antagônico: por eso soy tanto y tan poço, / tan multitud y tan desamparado  que, igualmente, faz pensar em outras expressões do poeta ao oferecer a sua voz aos pobres, aos perseguidos, aos humilhados ( yo vengo a hablar por vuestra boca muerta  do Canto General) aos quais, muitas vezes, se iguala ( Porque donde no tiene voz um hombre / allí, mi voz. Donde los negros sean apaleados, / yo no puedo estar muerto. / Cuando entren en la cárcel mis hermanos / estaré yo con ellos de Los versos del capitán).
            Nos dois últimos versos do poema, a explicação destas antíteses que os antecedem, porque vengo de abajo /de la tierra, onde, a idéia de pertencer às classes populares ( que as elites costumam designar pelo adjetivo baixas)  se reafirma com a expressão da terra. Expressão que neutraliza o que de pejorativo exista em  venho de baixo,  ao conter esse significado, liricamente pleno  que é sempre  o que Pablo Neruda  confere à terra nos seus poemas: Mi pacto con la tierra, ou palpitó la tierra, ou  fragancia secreta de la tierra do Memorial de Isla Negra por exemplo. Ou,  engrandecida pela inconfundível visão de mundo solidária  do poeta: tierra[..]),madre fecunda, / madre del pan y del hombre / pero / madre de todo el pan y de todos los hombres de Navegaciones y regresos.
            Assim, embora Pablo Neruda use um verbo no passado ( Yo me llamaba Reyes)  para falar do nome paterno que repudiou para poder assumir o seu caminho de poeta e de verbos no passado para falar de seu nascimento, ao se definir, neste poema feito já no fim da vida, usa o verbo no presente, por eso soy tanto y tan poco / tan multitud y tan desamparado,   para  retornar às origens. Não as renega por humildes, como tampouco se despoja dessa assunção – ser todos os homens – que lhe determinou, numa teimosa fidelidade a si mesmo, a rota de seus dias.

Cecilia Zokner in Literatura do ContinenteO Estado do Paraná, Curitiba, 1 de julho de 2001

8 de abril de 2001

O poeta e a mosca

Depois de o Señor Presidente, El recurso del método, El otoño del patriarca e Yo, el supremo não se trata de tarefa muito fácil escrever um romance cujo tema seja um ditador. Assim, ainda que busque no recurso narrativo de entrelaçar histórias – recurso já usado, com maestria, em Conversación en la Catedral – algo de efeito, Mario Vargas Llosa não consegue em La fiesta del chivo (que a Editora Mandarim, de São Paulo, traduziu no ano 2000) mais do que uma crônica, por vezes detalhada e monótona, do desgoverno (quer ditatorial, quer democrático) que é assaz conhecido em todos os países do Continente.

            Mudados os nomes e o espaço, nada do que no livro é narrado deixa de ser do conhecimento dos que acompanham (dentro do possível, pois as notícias dos países latino-americanos somente chegam a eles, filtrados elas agências noticiosas do Hemisfério Norte) o que acontece no Continente.
             Chivo (bode), palavra que faz parte do título do romance é o apelido do ditador, objeto principal da narrativa: Rafael Trujillo que, durante trinta anos, submeteu Santo Domingo a sua vontade soberana. Era dele o monopólio da imprensa, do rádio e da televisão; do sal, da cana de açúcar, do cacau, do café; dos transportes aéreos, do cigarro, da loteria, das companhias de seguro, dos bancos. Ele é quem, juntamente com Tacho, Caría, Martínez, Ubico, no poema “La United Fruit Co”, Pablo Neruda chama de mosca, moscas úmidas /de sangue e marmelada, /moscas bêbadas que zunem /sobre os túmulos populares, /moscas de circo, sábias moscas /entendidas em tirania.
            Esse poema é parte do Canto General, publicado em 1950, no México e com edições em vários países, incluindo os Estados Unidos. Teria o ditador de Santo Domingo dele tomado conhecimento e, então, do epíteto que lhe fora dado pelo poeta? Porque, de fato, resulta estranho que, nesse caso, cultuasse os versos de amor do poeta chileno. No entanto, pouco antes do atentado do dia 30 de maio de 196l que lhe tirou a vida, diz o romance de Vargas Llosa que recebeu, de presente, a filha de um antigo colaborador que, caído em desgraça, assim, com tal oferta, pretendia voltar a ser o homem de confiança que sempre havia sido. Na longa seqüência em que o romancista, pela voz da vítima, já agora mulher adulta e residente nos Estados Unidos, faz saber o que aconteceu nesse encontro entre o velho septuagenário e a adolescente de quatorze anos, o ditador decrépito simula uma conquista amorosa do que, na verdade, não passa de um estupro. Nada falta no cenário preparado pela fiel alcoviteira. Há, também, o cálice de xerez para a donzela e de conhaque para ele, há os boleros de Lucho Gatica e, surpreendentemente, um poema de Pablo Neruda, recitado no ouvido da menina e do qual, já mulher feita, ela ainda se lembra de uns versos.
            Na enumeração das atrocidades e dos atos vis de que é feito o romance, um desconfortável assombro essa seqüência em que versos de Pablo Neruda são recitados pelo bode /mosca. Certamente, parece improvável que tenha ignorado os versos de “La Untd Fruit Co” em que seu nome aparece tão pejorativamente e numa afronta que não perdoaria pois, é sabido, que jamais perdoou a quem quer que fosse.  Porém, se o impossível pode acontecer – ou o ditador não conheceu os versos do Canto General, ou não se ofendeu o suficiente para impedir-se de saber, de cor, um poema de amor de Pablo Neruda e recitá-lo, num hábito que, talvez, fosse conhecido –, os poderes do ficcionista lhe permitiriam abstrair a presença dos versos do poeta chileno num episódio repugnante em que qualquer aproximação com o ditador significa algo de lamentável e humilhante.
            E haveria razões para que Vargas Llosa a tal desastrosa humilhação condenasse o poeta? Pablo Neruda que um dia o chamou de extraordinário romancista?


Cecilia Zokner in Literatura do ContinenteO Estado do Paraná, Curitiba, 8 de abril de 2001

25 de fevereiro de 2001

Canto General: segundo poema

            O segundo poema do Canto General de Pablo Neruda, “Vegetaciones” é o primeiro dos cinco em que ele estabelece o cenário da história que irá contar e cujo início precisa no ano de 1400: uma terra que ainda não fora tocada pelos que viriam depois, quando se chamaria América. Desprovida de nomes e de números, ela se expandia em flores e em vidas, diz o poeta na primeira estrofe. A segunda, é feita de um só verso: Na fertilidade crescia o tempo, um pórtico para a exuberância do reino vegetal que a terceira longa estrofe e a quarta, irão relacionar: o jacarandá, a araucária, o acaju, o lariço, o “ceibo”, a seringueira, o umbu, árvores do Continente. Porém, mais do que mencionar espécies – e o milho e o fumo – ou lembrar-lhes o aspecto, no efêmero de um momento (o jacarandá a levantar espuma feita de esplendores transmarinhos, a araucária, lanças eriçadas, magnitude contra a neve ou na emoção de um adjetivo (a primordial árvore, a arvore trovão, a árvores vermelha, a árvore mãe) o poeta se prende à vida que delas emerge a se mostrar no perfume que exalam, na semente que se propaga. Vida que é um contínuo renovar-se no movimento no milho que se debulha e nasce de novo, na chuva que amamenta a aurora, no umbu que enlaça a terra com seus ramos e raízes.
            América arvoredo é a expressão que inicia a terceira estrofe e se reafirma no segundo verso, sarça selvagem entre os mares, tesouro verde a se estender de polo a polo. E o dizer poético, em metáforas e comparações e inesperados adjetivos, se enriquece, entrelaçando significados díspares (ramo/ilha; folha/espada; flor/relâmpago e medusa) nesse definir de transformações que determinam o Continente. Um espaço que o poeta chama de útero verde, cenário mítico onde germina a noite, onde soam as madeiras e irrompem nascimentos que os poemas seguintes irão povoar de animais e de pássaros.
No poema “Algunas bestias” (Alguns animais), a primeira estrofe, de um verso apenas, parece iniciar uma história – Era o crepúsculo do iguana –, mas o que na segunda estrofe consta é somente a rapidez de sua língua a se perder no verde das árvores. Logo, é o cenário da selva que mal assoma no colorido das copas das árvores, no mundo cheio de orvalho, nos limites da aurora, na noite pura e germinada, nos lamaçais sonolentos, neles se encadeando o formigueiro a pisar melodioso, as borboletas a se espantar com o pólen derrubado. É o guanaco e a lhama e os macacos se enredando na luz; e o jaguar e o puma se roçando nas folhas; e os jacarés, o texugo e a anaconda se molhando nas águas, num cerimonial feérico de ruídos opacos de armadura, de ausências fosforescentes, de barros rituais.
            Desenho de um mundo ainda impoluto que irá se desagregar com a chegada dos primeiros barcos vindos do mar. E dos homens então vilipendiados e das riquezas então espoliadas, o poeta dará testemunho. Lembrará as plantas e os animais do Continente sem dono e lembrará os que nele tentaram lutar contra as injustiças e os que morreram pela liberdade. Como num mosaico de pequenas peças, verso e reverso, luz e sombra, crueldades e esperanças e nomeando flores e árvores, animais e pedras, vítimas e heróis, os seus poemas vão nascer para contar a História.


Cecilia Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná, Curitiba, 25 de fevereiro de 2001

11 de fevereiro de 2001

Repetição

E Jacintho de Tormes, irritado, perguntava a quem o pretendia como sócio numa escavação de esmeraldas na Birmânia, se fora provada a existência delas no subsolo. Recebeu a exasperada resposta: “Esmeraldas! Está claro que há esmeraldas! Há sempre esmeraldas desde que haja accionistas”.


Em 1949, Pablo Neruda escrevia o epílogo de seu Canto General onde, como poeta-narrador, ele canta a glória e a miséria da América Hispânica. Dividido em quinze partes, cada uma composta de unidades de diferentes formas e extensão, o texto se apresenta como um mosaico a retraçar a História da América que foi esquecida, ignorada ou desprezada. Assim, os primeiros poemas desenham, nos seus pássaros, rios, minerais, plantas e homens que o habitam, a América pré-colombiana. Depois, o segundo Canto, “Alturas de Machu Pichu” cumpre, no dizer do crítico Nelson Osório, a função de Invocatio dos poemas épicos que, no Canto General não dará voz aos deuses, mas aos homens anônimos da América: desfilam os conquistadores, os libertadores e no quinto Canto, “A arena atraiçoada”, os que foram vítimas dos sátrapas e ditadores e das companhias imperialistas, sempre aptas e ansiosas para sugar riquezas em terras alheias.
Ao se propor cantar a América Hispânica, Pablo Neruda não podia ficar alheio ao que essas companhias verdadeiramente significavam para o Continente; tampouco, podia conter os indignados sentimentos que provocavam na sua perene espoliação sem limites.
Os primeiros versos de “La United Fruit Co”, no tom narrativo de muitos de seus poemas, remetem a um tempo pregresso em que soa a trombeta divina e Jeová reparte o mundo entre as definitivas e soberanas entidades: Coca-Cola In., Anaconda, Ford Motors e a Compañia Frutera Inc. Esta, batizou as margens da América Central de “Repúblicas Bananas” e, ali, estabeleceu o que Pablo Neruda chamou de ópera bufa. Uma expressão, certamente, precisa para designar todo esse aparato erguido para mascarar a onipotente vontade dos impérios do dinheiro que se servem de fantoches apátridas para exaurir o Continente. São as moscas do circo, sábias moscas entendidas em tiranizar: os ditadores que, agraciados pelo dinheiro do Hemisfério Norte, usufruem de um poder absoluto cujo preço é a obediência que lhes faz satisfazer os amos, qualquer que seja a ordem recebida, entregando à miséria e à destruição o seu próprio povo. É entre essas moscas sanguinárias que a Companhia Fruteira desembarca, protegida pelas leis dos ditadores de turno, para arrebatar o café e as frutas no abismo açucarado dos portos.
Na verdade, são acordos que ninguém ignora como, igualmente, são conhecidas as vítimas que fazem. Na última estrofe do poema, Pablo Neruda se volta para elas: índios, enterrados em meio à névoa da manhã, o corpo a cair, uma coisa /sem nome, um número caído, /um racimo de fruta morta/ derramada na podridão. Síntese do que sempre foram, para os investidores, para os que professam proselitismos, para os que pretendem ser salvadores dos que endossam outras ideologias, os homens do Continente. E a História que tem sido feita, ao eludir ou esconder essas relações, não apenas faz desaparecer assassinatos e roubos como impede perceber que as mesmas manhas e as mesmas patranhas continuam a vigorar no mapa da América.


Cecilia Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná, Curitiba, 11 de feveiro de 2001