Embora Prêmio Nobel
1971, Pablo Neruda foi muito pouco traduzido no Brasil. Certamente, para isso,
contribuiu a sua postura ideológica que jamais esteve em acorde com aquela dos
que regiam os destinos do Continente. Mas, também, essa opção constante dos
brasileiros em considerar digno de atenção somente o que é produzido no
Hemisfério Norte, mais precisamente, ao norte do Rio Bravo.
Cien sonetos de amor, publicado em 1965
pela Losada de Buenos Aires, só apareceu, no Brasil, em 1999, número 19 da
coleção L & PM Pocket de Porto
Alegre.
Como não consta nessa edição qual o volume que lhe serviu de fonte, não
é possível saber se as diferenças tipográficas (nomes dos meses janeiro e junho,
grafadas com maiúsculas no original e com minúsculas na tradução e a palavra
sur grafada com minúscula no original e
com maiúscula na tradução) ou as mudanças nas estrofes do soneto LXIII (no
original um terceto, um quarteto, dois tercetos e na tradução, um quarteto, um
terceto, um quarteto, um terceto ), se relacionadas com o texto da edição
Losada, 1969, representam ou não, um desvio do texto original, texto que todo
editor tem o dever de respeitar no mais mínimo de seus detalhes. Inegáveis, no
entanto, são os desvios ocorridos a nível do vocabulário, muitos dos quais,
verdadeiramente, inaceitáveis, sobretudo se for levado em consideração o autor
da tradução, neste caso, o respeitado poeta gaúcho Carlos Nejar.
Assim, o
topônimo, Chillán, cidade em cujos arredores são cultivados trigais e vinhedos,
aparece, no texto da L & PM como Chile. Dar-se-ia o caso de o tradutor
acreditar que a palavra tivesse sido grafada erroneamente ou que, se
conservada, pudesse dificultar a compreensão do poema? Ou se trata, apenas, de
uma simplória inadvertência? Como as várias outras, presentes ao longo do
livro: presença de palavras em português
cujo significado é bem diferente daquele das palavras usadas pelo poeta que terá,
então, deturpado o significado de seu verso. Exemplos disso:, humo (fumaça), traduzido por fumo; ratas (ratos) por momentos;
escoba (vassoura) por escova; oso (urso) por osso; acuerda (lembra) por acorda; matorral (mato) por cipoal;
volvemos (tornamos) por revolvemos e chascona (desgrenhada) por brejeira.
Fica evidente que a semelhança dos termos nos dois idiomas, em alguns casos,
norteou a escolha do tradutor. Outros, porém, são inexplicáveis: as palavras oso e huesos, por exemplo. A primeira foi traduzida por osso, deixando, evidentemente, o verso
sem sentido pois a expressão “paciencia de oso” de Pablo Neruda (paciência de urso)
passou a ser, em português, “paciência de osso”. A segunda, hueso (osso) foi, num outro poema,
devidamente traduzido por osso. Também
matorral, traduzido, uma vez por mato e outra, aleatoriamente, por cipoal.
E, humo, traduzido, num poema
por fumaça e noutro, erradamente por fumo. E traduzir ratas por momentos deve
ser devido à contaminação com o significado de rato, termo cujo significado, em português, é momento. Do verso original do soneto LXXV “las ratas muertas”, o significado se perdeu
para, em português, significar “momentos mortos”. Deveras importante é o desvio que envolve a palavra chascona. Termo popular chileno,
significa “pessoa com uma cabeleira abundante, usada, sistematicamente de forma
emaranhada”, termo que, inclusive, foi usada pelo poeta para nomear a casa em
Santiago onde se encontrava com Matilde quando, ainda, não se havia separado de
sua mulher Delia del Carril. No soneto XIV, cujo primeiro verso é “Me falta tiempo para celebrar tus cabellos”,
o termo chascona (seguido de outro, enmarañada que tem o mesmo significado) recebe, como tradução, a
palavra brejeira, que, não somente não
significa o que foi dito pelo poeta como se refere a uma qualidade ou defeito
(entre suas várias acepções: travesso, garoto, patusco, brincalhão, malicioso,
lúbrico...) que não está em sintonia com o soneto, cuja intenção é celebrar o
cabelo da amada. E, não apenas, o primeiro verso o diz como os demais onde
Pablo Neruda usa, também, a palavra pelo que
o tradutor, sistematicamente, traduz por pelo
nas inúmeras vezes em que aparece. Embora seja um possível significado para a
expressão espanhola, nos versos em que o poeta celebra o físico da amada, parece
evidente estar a referir-se a seus
cabelos – “mi corazón conoce las puertas de tu pelo”, “hasta que el sol sube a
la torre de tu pelo”, “tienes enredadera y estrellas en el pelo”, “para que
pase mi sombra por tu pelo” – e que ao tradutor cabe optar por esta acepção e
não pela outra que diminui, sem dúvida, a expressividade poética do poema. Uma
expressividade que, certamente e de todas as maneiras, ainda que em condições
ideais, irremediavelmente, se perde pelo simples fato de ser transformada em
outro universo lingüístico. No entanto, poderia existir uma aproximação mais
perfeita no caminho de um idioma para o outro se fosse possível evitar desvios,
devidos unicamente ao despreparo ou à indiferença que rege o autor das
traduções, num país em que o respeito pela produção intelectual sempre foi e
continua sendo (evidentemente não se incluem aí as sempre honrosas exceções)
algo de inexistente.
Cecilia
Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná,
Curitiba, 23 de janeiro de 2000