ESTOCOLMO,
dezembro - (AFP) - O poeta chileno Pablo Neruda, prêmio Nobel de literatura
1971, pronunciou ontem a tradicional conferência que os premiados devem, em
princípio, realizar após receberem o laurel.
Embora
a Academia Sueca não se mostre muito rigorosa em exigir o cumprimento desta
obrigação, única imposta às personalidades premiadas pelos estatutos do Nobel,
o autor de "Canto General" aderiu com gôsto, ao costume.
Anteriormente,
êle e os demais contemplados dêste ano tinham ido até a Fundação Nobel, onde
lhes foram entregues os cheques no valor de 450 mil coroas (mais de 86 mil
dólares). Os clássicos diploma e medalha de ouro lhes tinham sido conferidos na
sexta-feira passada em ato solene presidido pelo rei Gustavo Adolfo Sexto.
FÁBULA
A
conferência arrancava de uma extraordinária fábula biográfica: a travessia dos
Andes, do Chile à Argentina, que, em um momento de sua vida, Neruda perseguido
teve que empreender a cavalo.
A
luz daquela experiência inesquecível - tanto
pela grandeza e perigo da paisagem como pela freqüente, quase invisível
presença do gesto e lembrança humanos - Neruda esboçou logo sua doutrina
poética e, enlaçado com esta, seu modo de entender o compromisso político.
Em
sua descrição do passo dos Andes, que ocupou quase metade da conferência, o poeta
desvendou com luxo e elegância de linguagem a majestade das alturas, o insondável
dos abismos, a espessura dos bosques: "silêncio verde e branco" e, ao
mesmo tempo, "ameaça de frio, neve e perseguição".
Pouco
a pouco, incômodo sôbre sua montaria, o escritor ia descobrindo a "trilha
estreita, deixada talvez por contrabandistas ou delinqüentes comuns
fugitivos". Seus guias, por sua parte, marcavam o caminho com chametaços,
rubricas vivas de sua passagem.
Chegando
a uma clareira Neruda e seus acompanhantes se entregaram ao rito que, durante
decênio, tinham seguido quantos a utilizaram como albergue: depositaram moedas
para eventual socorro a desconhecidos dentro de um crânio de boi e dançaram, em
um só pé, em tôrno da caveira.
ENSINAMENTO
E
quando, por fim, a expedição chegou ao galpão fronteiriço, onde se achavam outros
homens, outros desconhecidos, montanheses, curtidos que os receberam com
hospitalidade fraterna, e, já refeitas suas forças, quis o poeta corresponder
com algumas moedas "êles recusaram nosso oferecimento simplesmente. Eles
nos tinham servido e nada, mais e neste "nada mais", neste silencioso
"nada mais" havia muitas' coisas subentendidas, talvez o reconhecimento,
talvez os mesmos sonhos".
-
Naquela longa jornada prosseguiu o conferencista - encontrei as doses
necessárias à formação do poema. Ali me foram dadas as contribuições da terra e
da alma. E penso que a poesia é uma ação passageira ou solene, em que entram,
em iguais medidas, a solidão e a solidariedade, o sentimento e a ação, a
intimidade de si mesmo e a secreta revelação da natureza.
Há
"um ensinamento - prosseguiu - que o poeta deve aprender dos demais
homens: não há solidão inexpugnável. Todos os caminhos levam ao mesmo ponto, à
comunicação do que somos".
- Os inimigos da poesia não estão
entre os que a professam ou resguardam, mas na falta de concordância do poeta.
Daí que ninguém tenha inimigo mais essencial que sua própria incapacidade para
entender-se com os mais ignorados e explorados de seus contemporâneos - disse
Neruda.
CONSCIÊNCIA
Porque
"o poeta não é um "pequeno deus", não está marcado por um
destino cabalístico superior ao dos que exercem outros afazeres e ofícios.
Freqüentemente disse que o melhor poeta é o homem que nos entrega o pão de cada
dia, o padeiro mais próximo, que não se crê um deus".
-
E se o poeta chega a alcançar esta simples consciência, poderá também a simples
consciência converter-se em parte de um artesanato colossal, de uma construção
simples ou complicada, que é a construção da sociedade. Só por êste caminho
inalienável de homens comuns é que chegaremos a restituir à poesia o largo espaço
que nós mesmos lhe vamos dedicando em cada época.
-
Nós mesmos vamos criando os fantasmas de nossa própria mitificação - insistiu o
prêmio Nobel. Da argamassa do que fazemos, ou queremos fazer, surgem mais tarde
os empecilhos para nosso próprio e futuro desenvolvimento.
Prosseguiu
criticando o "realismo" e o "idealismo" poéticos.
"Impomo-nos um realismo que posteriormente se torna mais pesado que o
ladrilho das construções, sem que por isso tenhamos erigido edifício que contemplávamos
como parte integral de nosso dever. E em sentido contrário se alcançamos a
criar o fetíche do incompreensível (ou do compreensível para poucos), o fetiche
do seleto e do secreto se suprimimos a realidade e suas degenerações realistas,
logo nos veremos rodeados de um terreno impossível, com fôlhas barro e nuvens,"
no qual "nos afoga, uma incomunícação opressiva".
PARTIDÁRIO
- Quanto a nós em particular,
escritores da vasta extensão americana escutamos sem trégua o chamado para preencher
éste enorme espaço com seres de carne e osso. Necessitamos encher de palavras
os confins de um continente mudo e nos embriagam essa tarefa de fabular e
nomear. Talvez se seja esta a razão determinante de meu humilde caso individual
e nestas circunstâncias, meus excessos, ou minha abundancia ou minha retórica não
viriam a ser senão atos os mais simples do afã americano de cada dia.
Como
em sua aventura andina, cada um dos cantos de Neruda "aspirou a servir no espaço
como signo de reunião onde se cruzaram os caminhos, ou com fragmento de pedra'
ou de madeira em que alguém, outros, os que virão, poderão depositar os novos signos
".
Por
isso - e então o poeta entrava na última parte de sua conferência - "decidi
que minha atitude dentro da sociedade deveria ser também humildemente
partidária. Compreendi colocado no cenário das lutas da América, que minha
missão humana não era outra senão juntar-me à extensa fôrça do povo organizado.
Herdamos a vida lacerada dos povos que arrastam um castigo de séculos, povos os
mais edênicos, os mais puros,os que construíram com pedras e metais tôrres milagrosas,
de fulgor deslumbrante, povos que logo foram arrasados e emudecidos pelas
épocas terríveis do colonialísmo que ainda existe".
-
Nossas estrêlas primordiais são a luta e a esperança: mas não há luta nem esperança
solitárias. Eu escolhi o difícil caminho de uma responsabilidade dividida e,
antes de reiterar a adoração ao indivíduo como sol central do sistema, preferi
entergar com humildade meu serviço a um considerável exército que pode
equivocar-se, às vêzes, mas que caminha sem descanso e avança cada dia,
enfrentando tanto os anacrônicos recalcitrantes como os enfatuados impacientes.
E
Neruda concluiu aprofundando êste tema da paciêncía com uma citação de Rimbaud:
"A l'aurore, armés d'une ardente patience, nous entrerons aux splendides
villes". (Ao amanhecer, armados com uma ardente paciência, entraremos nas
esplêndidas cidades).
-
Devo dizer aos homens de boa vontade, aos trabalhadores, aos poetas, que o futuro
inteiro foi expressado nesta frase de Rimbau: sómente com uma ardente paciência
conquistaremos a esplêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os
homens - rematou o coroado poeta chileno.
Neruda: Eu pertenço às massas populares
WASHINGTON, dezembro
(AP) - O laureado poeta chileno Pablo Neruda insinuou que o escritor argentino
Jorge Luis Borges pensa como um dinossauro, mas recusou-se a entrar em polêmicas.
-
Nunca entrarei em disputa com Borges, afirmou Neruda, prêmio Nobel de
literatura dêste ano.
-
É que êle pensa como um dinossauro e isto não afeta meus pensamentos. Borges não
entende nada dos acontecimentos do mundo contemporâneo, mas êle acredite que eu
tampouco entendo nada. De maneira que estamos de acordo.
A
divergência entre os dois notáveis homens de letras aconteceu a respeito do
revolucionário Ernesto Che Guevara, que Neruda tinha elogiado. Borges pediu
terminantemente que não lhe falassem em Guevara.
Arquivos
Outros, O Correio do Povo,
Porto Alegre, 19 de dezembro de 1971