Divisão dos Arquivos

O Blog Pablo Neruda Brasil está apresentado em quatro seções obedecendo à data de publicação da matéria:

Arquivo Cecilia Zokner

Os breves textos sobre a poesia de Pablo Neruda foram publicados sob a rubrica Literatura do Continente no jornal O Estado do Paraná, Curitiba e fazem parte, juntamente com outros textos versando sobre Literatura Latino-americana, do Blog http:\\www.literaturadocontinente.blogspot.com.br. Os demais, em outras publicações.

Arquivo Adriana

Chilena de Concepción, amiga desde 1964, quando convivemos em Bordeaux, ao longo dos anos me enviou livros e recortes de jornal sobre Pablo Neruda. Talvez tais recortes sejam hoje, apenas curiosos. Talvez esclareçam algo sobre o Poeta ou abram caminhos para estudos sobre a sua obra o que poderá, eventualmente, se constituir uma razão para divulgá-los.

Arquivo Delson Biondo

Doutor em Literatura na Universidade Federal do Paraná. No ano do centenário de nascimento de Pablo Neruda, convidei Delson Biondo, meu ex-aluno do curso de Letras para trabalharmos sobre “Las vidas del Poeta, as memórias de Pablo Neruda”, constituídas de dez capítulos, publicados, em espanhol, na revista O Cruzeiro Internacional, no ano de 1962. Iniciamos o nosso trabalho com a sua tradução, visando divulgar, no Brasil, esse texto do Poeta que somente anos mais tarde iria fazer parte de seu livro de memórias Confieso que he vivido. Todavia, várias razões impediram que a tradução fosse publicada no Brasil, mas continuamos a trabalhar sobre “Las vidas de Poeta” no que se referia aos aspectos formais comparativamente a esses mesmos textos que passaram a fazer parte de Confieso que he vivido. Além desse estudo comparativo, pretendíamos nos aproximar, minuciosamente de cada um dos capítulos de “Las vidas del Poeta”. A comparação foi realizada e o estudo do primeiro capítulo concluído. Estávamos já, terminando a redação do estudo do segundo capítulo quando Delson Biondo veio a falecer em maio de 2014. Assim, as notas comparativas dos textos nerudianos e o estudo do segundo capítulo de “Las vidas del Poeta” não foram concluídos. Penso que a eles nada devo acrescentar.

Arquivo Aberto

Arquivo Aberto à recepção de trabalhos escritos em português ou espanhol que tratem da obra de Pablo Neruda, obedeçam às normas da ABNT e sejam acompanhados de um breve curriculum do autor. Os trabalhos poderão ser enviados para publicação neste Blog pelo e-mail pablonerudabrasil@gmail.com.

24 de setembro de 1994

As flores e os frutos

Quero que o que eu amo siga vivo
e a ti eu te amei e cantei sobre todas as coisas,
por isso continua florescendo, florida.
Pablo Neruda.

            Cien sonetos de amor, como outros de seus livros publicados entre 1958 e 1964 é, no dizer de Emir Rodriguez Monegal, o livro das folhas outonais de Pablo Neruda. Um livro que se inscreve nesse momento da vida do poeta em que se revelam as experiências mais complexas e profundas que ele irá aprisionar nas leis do soneto. Não mais aquele soneto clássico, feito para cantar com perfeição a mulher amada mas outro, pleno, também, do poético encontrado no mais chão do cotidiano. Porque Pablo Neruda se apropriando das coisas e dos seres, na sua avidez de existir e no seu poder de forjar maravilhas lhes dá vida com as palavras. Sejam elas oriundas do mais simples e real prosaico, sejam possuidoras da força de sugestão exigida para a elaboração do poético. Fiel a si mesmo, nos Cien sonetos de amor em que a presença da mulher amada se faz de enumerações, de comparações, de metáforas, de confissões, de lembranças, do vislumbrar do futuro, a sua emoção se ampara, ainda uma vez, dos elementos da terra: e âmbar, areia, turquesas, ágata, esmeraldas, metais e cereais e flores e frutos. Referências à acácia, amapola, amaranto, cravo, gardênia, jasmim, madressilva, magnólia, nenúfar, rosa e violeta se espalham pelos sonetos, assim como aquelas a uns poucos frutos: ameixa, amêndoa, laranja, limão, maçã, melancia, pêssego, uva.
            Acácia, amapola, amaranto, gardênia, magnólia, madressilva, nenúfar (exceção feita da madressilva cuja referência é feita ao perfume que exala e da gardênia num verso onde se vislumbram suas inquietações sociais), são expressões que aparecem uma única vez e para delinear Matilde: tens peso de acácia, de legume dourado, e tu irás aparecer em outra estrela, /determinadamente transitória, /convertida por fim em amapola, se tinge tua boca de amaranto, oh! radiante magnólia desatada na espuma, deixa que teus quadris imponham na água /uma nova medida de cisne ou nenúfar.
            Ao jasmim e à violeta são feitas duas referências: numa delas, jasmim aparece para dar idéia de um romper da ordem natural das coisas, em outra, metaforicamente, significando as pegadas de Matilde. E, violeta, num epíteto, significando um amor áspero, violeta coroada de espinhos, e para designar a voz de Matilde, carregada de violetas.
            Quase numa dezena de vezes é a presença do cravo e da rosa: o cravo, usado, sempre, no plural, terá função de espaço (ali onde respiram os cravos), será gosto na boca do poeta, fruto da terra, qualidade de Matilde nos seu desprender de aromas e recompensa (os amantes felizes têm direito a todos os cravos). A palavra rosa aparece tanto no singular quanto no plural. Para descrever o mar e suas ondas ou comparada a uma pedra do mar ou à luz que traz Matilde nas mãos, ou objeto de seus cuidados ou numa comparação em que o poeta reafirma o amor que sente e, ainda, num epíteto para o amor: rosa molhada por sereias e espumas.
            Quanto aos frutos, o poeta repetirá, sobretudo, a palavra uva. Para dizer do estilo de Matilde (estilo de uva grande), para definir o amor e numa comparação em que desditas são comparadas à uvaspequenas que juntaram o verde amargo. Também, repetidas vezes, a palavra maçã: dando-lhe a primazia de poder tocar Matilde: Não te toque a noite, nem o ar, nem a aurora, /só a terra, a virtude dos cachos, /as maçãs que crescem ouvindo a água pura), e para esboçar um espaço de luz e de liberdade.
Duas vezes aparecerão melancia e laranja. No soneto XX os beijos de Matilde são comparados ao frescor da melancia e no soneto LXXVI, a sua boca é a melancia; no soneto XCIX, o poeta a vê caminhando entre as melancias. Da laranja é a cor da vespa e laranja é, como o relógio, claridade ou sombra, alvo de despedidas. Limões são luz; pêssegos, como a ágata e o trigo, matérias próprias para erigir a estatua de Matilde. Ameixas são o perfume de sua sombra, amêndoa, a pele que o poeta almeja. Por castanha, a qual acrescenta o adjetivo despenteada, designa a mulher amada.
            Esse curioso emprego do adjetivo, antropomorfizando o fruto se constitui uma das muitas surpresas que oferecem os sonetos nerudianos de Cien sonetos de amor. Mas, há, igualmente, além dessas surpresas ancoradas no inesperado do adjetivo (rosa molhada por sereias e espumas, uvas tempestuosas), as que inventam um mundo de contradições (violetas coroadas de espinho, povoados lancinantes de andrajos e gardênias) ou que rompem a lógica nesse dizer em que os limões desprendem luz e as sombras, perfumes.
            Assim, num dizer prosaico do dia a dia ou na esmerada riqueza de um verso perfeito, são cores e perfumes e formas que emergem num desabrochar e florescer de emoção para delinear ou homenagear Matilde. E, ao envolvê-la ou entrelaçá-la nesses frutos e nessas flores, dádivas da terra, Pablo Neruda se mostra, como nunca, nos seus melhores e verdadeiros ímpetos de lirismo.

Cecilia Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná, Curitiba, 24 de setembro de 1994


28 de agosto de 1994

A alma escondida

Arquivo Cecilia Zokner

Um poema de Memorial de Isla Negra começa com um peremptório e certamente polêmico verso: Que bom é todo o mundo! Então, Pablo Neruda enumera nomes de pessoas boas e torna quase lei essa bondade que ele atribui a todos, embora lhe ocorra que, talvez, somente tenha lhe tocado conviver com o bom grão ou com aqueles que, impenetráveis, não se deixam ver na sua bondade.
Diante de irrefutáveis provas de atos que possam contradizer suas certezas, Pablo Neruda continua a acreditar na qualidade que é negada por aquele que comete um crime ou que insulta os outros. Daí, ele concluir que há muito que arrumar neste mundo, / para provar que todos somos bons / sem ser preciso se esforçar: não podemos / transformar a bondade em pugilato. / Assim ficariam despovoadas / as ci­dades, onde / cada janela esconde com cuidado / os olhos que nos buscam e não vemos.

Esse mesmo olhar de Pablo Neruda que percebe o segredo dos homens, que explica a bondade do criminoso como uma avareza do sentimento não entregue irá se pousar no ina­nimado e descobrir-lhe o frêmito escondido.
Como um ser mítico, o poeta descobre a vida nesse suceder de riquezas que se exibe no mercado e como que um detentor de poderes mágicos, pela palavra faz com que re­nasçam em tons, em perfumes.
Pablo Neruda sugere e insinua ao descrever esse micro universo de legumes e de frutas numa retórica ex­tremamente afetiva. Emergem do prosaico anonimato do mercado como seres especiais não somente possuidores de cor e de aroma como de uma hierarquia que lhes é concedida por elemen­tos antropomórficos. Assim, é caracterizado o queijo: Não veio aqui só para ser vendido: / veio para mostrar o dom de sua matéria, / sua compacta inocência, / o espessor materno de sua geologia. Assim, é caracterizado o vinho, sempre be­ligerante, áspero e vermelho, ou a apressada alface, o risonho tomate, a pálida maçã.
No âmago do homem que se revela para o poeta pura polpa de fruta, na brevidade dessas pequenas existências - e a cenoura, e o nabo, e a menta, e a batata - o poeta en­contra uma fonte de inspiração que se inscreve na essência dos seres.
É um poetar que encontra desconhecidos tesou­ros na alma dos homens e algo de humano nas frutas, nos legu­mes, nos queijos e nos vinhos que se exibem no cotidiano do mercado.

Feito de verdades ou de invenções, talvez se­jam versos que testemunhem além dos limites da razão. Ou, apenas mostrem o que escondem os homens nos seus invólucros humanos e o que não é percebido nos frutos da natureza.

Cecilia Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná, Curitiba, 28 de agosto de 1994

10 de julho de 1994

Raízes

Arquivo Cecilia Zokner

... sou das vinhas negras de Par­ral...
Pablo Neruda

Em 1964 foi publicado El memorial de Isla Ne­gra pela Editorial Losada de Buenos Aires. Uma autobiografia escrita em versos cuja nota maior, apesar das indignações e das melancólicas reflexões que o olhar para o mundo faz emer­gir é a alegria de viver, a felicidade de criar.
Pablo Neruda o escreveu, dizem, para festejar os seus sessenta anos e o fez, transformando em poesia as lembranças do passado e as inquietações que o levaram pelos caminhos do mundo.
O livro está feito em cinco partes: Onde nasce a chuva, A lua no labirinto, O fogo cruel, O caçador de raízes, Sonata triste e se inicia com o poema “Nascimento”. Nas suas quatro primeiras estrofes, a voz de um narrador, anunciando o nascimento de um homem entre tantos outros e que entre muitos, viveu. Mas, ele diz, a história não está aí e sim na terra, terra central do Chile.
Esse deslocamento do foco de interesse, do homem para o espaço físico, adquire maior importância na se­gunda estrofe de três versos onde aparece o topônimo Parral ligado àquele que nasceu no inverno.
Delineia-se nesse verso, a presença do poeta, nascido no dia 12 de julho.
Na estrofe seguinte, o foco de interesse ainda se mantém fixo no espaço para narrar a sua destruição pelo terremoto do qual se salvaram alguns homens e o vinho. Do pó em que tudo se transformou, somente as parreiras perse­veraram em dar uva e vinho.
Assim, como já fora feito no Canto geral, o tom épico desaparece e surge o eu confessional, intensamente lírico. Um eu que se submerge em busca do passado mas nele o que está inscrito perdura sem imagens dos rostos, das figu­ras, das paisagens.
Nenhum apelo ou desejo imenso - esse querer do filho em vislumbrar o desconhecido rosto materno, ultra­passa as barreiras do tempo e da morte: E como nunca vi / seu rosto / a chamei entre os mortos, / para vê-la, / mas como os outros enterrados, / não sabe, não ouve, não respon­deu nada, / e ali ficou sozinha, sem seu filho, / arredia e evasiva / entre as sombras.
Dessa solidão que imagina - a mãe que mal ti­vera nos braços o filho antes de morrer tuberculosa - e da sua, ao perdê-la, sem ao menos ter lembranças de seus traços, parte a procura do passado.
Retoma, então, a presença esboçada na segunda estrofe - Parral se chama o lugar / do que nasceu / no in­verno e o topônimo primeiro de sua vida de caminhante para definir raízes que se mesclam na terra e na mãe que nessa terra está sepultada: E dali, sou, daquele / Parral de terra trêmula, / terra carregada de uvas / que nasceram / de minha mãe morta.
A trajetória em busca do passado - a figura do pai, da mulher que lhe serviu de mãe, as descobertas do menino, os amores, a consciência política - continuam a se transformar em verso. Sobre a terra pulverizada e desfeita pelo terremoto e sobre o desconhecido rosto da mãe já, então, o poeta se cala até que num dos poemas do final de sua vida, entre tantos que falam de solidão, morte e desesperança, res­surgem as raízes, raízes alastradas pelas terras do Chile.

Invicto, como que invicto, ele reafirma: Eu sou de Iquique, / sou das vinhas negras de Parral, / da água de Temuco, / da terra delgada, / sou e estou.

Cecilia Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná, Curitiba, 10 de julho de 1994

3 de julho de 1994

Ano 2000

Arquivo Cecilia Zokner

Pablo Neruda morreu no dia 23 de setembro de 1973, em meio aos desatinos
do golpe militar que, doze dias antes, haviam dado morte a Salvador Allende.
Cumprira, no dia 12 de julho, sessenta e nove anos. Seus últimos poemas, publicados postumamente pela Edi­torial Losada de Buenos Aires, embora expressem as novas cer­tezas e dúvidas que a aproximação da morte pode revelar, não abandonam velhos motivos.
Emir Rodriguez Monegal, num trabalho publi­cado nas Actas do Simpósio Pablo Neruda, realizado na Univer­sidade Carolina do Sul, em 1974, ao relacionar as Memórias de Pablo Neruda com as histórias de sua vida, faz referên­cia a essa passagem do épico para o dramático ou a essas per­sonificações em que o poeta deixa de ser ele mesmo para se converter noutra pessoa, uma constante nos seus poemas.Assim, diz o crítico uruguaio, a assunção da voz dos índios construtores de Machu Pichu, o se situar entre os mineiros, os trabalhadores em greve, as vítimas da explo­ração, os que lutam para dar um basta às iniquidades sociais. Uma identificação do poeta com os pobres que o acompanhará até o fim de seus dias.
Em 2000, um de seus oito livros póstumos, dois poemas são disso a prova. O primeiro tem por título “Os homens” e se inicia com o pronome de primeira pessoa. Um eu determinado, eu sou Ramón González Barbagelata, proveniente de qualquer lugar. Os topônimos se sucedem, antes que a apre­sentação se complete: sou o pobre diabo do pobre Terceiro Mundo. Aquele que chegou - o verbo no passado está anteci­pando o futuro - no ano 2000 com o fardo da pobreza de sem­pre: com o barraco de sempre, com a escola sem recursos de sempre, com os farrapos, a má sorte e os piores empregos de sempre; para quem é lícito se perguntar: com o ano 2000 que eu tenho que ver / com os três zeros que se ostentam / glori­osos / sobre meu próprio zero, sobre minha inexistência?
Como resposta a um interlocutor é o poema que segue, intitulado, “Os outros homens”. Igualmente, se inicia com uma primeira pessoa que se rotula anarcopitalista furi­bundo, disposta a tirar proveito do que se lhe ofereça: Eu respiro à vontade / no jardim bancário deste século / que fi­nalmente é uma grande conta corrente / na qual por sorte sou credor.
E, tão veraz como Ramón González Barbagelata no testemunho de sua miséria, este “anarcopitalista” ao se beneficiar, vê somente beleza no milênio que se inaugura: os três zeros nos resguardam de toda insurreição desnecessária.
A perversa dicotomia das duas vozes, mostram, sem complacência, um Pablo Neruda vencido nas suas esperan­ças: o pobre do Terceiro Mundo a entrar no ano 2000 como sem­pre foi e proclamando o supérfluo da inauguração do milênio; e o rico perseverando, confiante, nos seus objetivos que prescindem de transformações para serem alcançados. Para ele, basta um novo dicionário para mudar o nome das coisas que po­derão continuar a serem as mesmas.
Entre essas vozes que assumem o explorado e o explorador, a comovente expressão do poeta: Ai daquele cora­ção que esperou sua bandeira / e do homem entrelaçado pelo amor mais terno, / hoje não resta mais do que meu vago esque­leto [...].
Após tantas lutas e a enorme esperança vã - igualdade na liberdade - do Chile de Salvador Allende, o so­nho eterno, o sonho necessário de que fala, em setembro de 1973, Jean Jacques Servan-Scheriber, para Pablo Neruda se tornou irrealizável. Porque nos últimos doze dias de sua vida a força desprovida de razão dos que decidiram reestruturar o país lhe fizeram ver abismos de injustiças, repressão, massa­cre, torturas inimaginadas.

O primeiro verso de seu livro 2000 vatici­nara: Piedade para estes séculos e seus / sobreviventes.

Cecilia Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná, Curitiba, 7 de junho de 1994

26 de junho de 1994

Quatro estações

Arquivo Cecilia Zokner

           Em 1974, foi publicado, pela Losada de Buenos Aires, Jardin de invierno, uma das oito obras inéditas de Pa­blo Neruda dadas à luz após sua morte. É um pequeno livro de vinte poemas feitos, principalmente, de uma irremediável e desesperançada tristeza.

            A tristeza do inverno, o inverno verde e ne­gro, o inverno que chega e faz do poeta esse círculo que espera. Desalentadora espera de quem se sabe prisioneiro da imutável trajetória do ser humano, conduzindo à morte e, so­bretudo, dessa nova verdade induzida pela aproximação do fim: não há mais nada para decifrar, / nem nada mais que falar: isso era tudo: / fecharam-se as portas da floresta, / circula o sol abrindo as folhagens, / sobe a lua como fruta branca / e o homem se acomoda a seu destino.
            E o tempo, cada estação adquire as cores que o olhar do poeta lhes concede. No poema “Outono”, é a visão da cidade às vésperas de uma convulsão onde se instala o ou­tono vestido de soldado. Em “Jardin de invierno”, o outono se mostra dadivoso e chega para estabelecer a escrita do vi­nho e, como o estio é, igualmente, passageiro.
            Na segunda vez que aparece referência à esta­ção do calor é como um motivo para amargas reflexões. Não vou ao mar neste amplo verão coberto de calor, quase prosai­camente, o poeta informa. Mas, o tom se adensa principalmente na última estrofe quando ele torna a dizer: Não saio ao mar este verão, para explicar então: estou encerrado, enterrado e ao longo / do túnel que me leva prisioneiro / ouço remota­mente um trovão verde, / um cataclisma de garrafas quebradas, / um sussurro de sal e de agonia.
            A oposição que se estabelece entre seu des­tino de preso e de condenado e o poderio do mar vai se repe­tir no poema “Con Quevedo, na primavera”. Na primeira es­trofe, irrompem as cores - e o azul e o amarelo e o verde e a sugestão do vermelho no nome de uma flor - como uma pequena aquarela que se enche de vida com o ar novo, com o tácito fulgor, ofertas de uma longa primavera.
            Mas, logo na segunda estrofe, o ar e a cor imaginados cedem lugar a um vazio - só não há primavera em meu recinto - e ao que pode ser os votos de uma fada má: Doenças, beijos desquiciados, / como heras de igreja se co­laram / nas janelas negras de minha vida / e só amor não chega, nem o selvagem / e extenso aroma da primavera.
            Como se nesses dias que se sabe são os dias em que se aproxima do fim, já nada pudesse lhe agradar - o sorriso, a medalha laudatória, dinheiro, livros, beijos, ca­minhos pela frente - já nada lhe fosse dado usufruir: o ho­mem eu, o mortal, se cansou.
            Mas, em acorde com o título do livro conce­bido em claro-escuro - jardin, sugerindo cor e vida, e invi­erno, um interregno de aspereza e nudez -, muitos dos poemas nele contidos se iluminam de palavras que remetem a uma natu­reza cheia de vida.
            Mau grado a desolação do poeta, esse seu de­sejo de fugir de si mesmo e do significado da existência como diz nos versos de “Animal de luz”, ele não se nega ao espetá­culo da vida.
            E, assim como fala dessa rosa que irá cair, fala, também, do caroço de pêssego que voltará a germinar. Das primaveras que se extinguem para tornar a despertar.

            Se cada estação do ano lhe sugere tristezas neste seu lento preparar-se para o fim, é, porém, no contínuo ciclo vital de morte e vida renovada que Pablo Neruda encon­tra, ainda, algo em que acreditar:
Esta é a hora
das folhas caídas, trituradas
sobre a terra, quando
de ser e de não ser voltam ao fundo
despojando-se de ouro e de verdor
até que são raízes outra vez
e outra vez, desfazendo-se e nascendo,
sobem para conhecer a primavera.

19 de junho de 1994

Matilde

 Arquivo Cecilia Zokner


Quando morreu em 24 de setembro de 1973, Pablo Neruda deixou oito livros inéditos. Segundo a Editora Losada eram poemas escritos simultaneamente mas que deveriam ter uma ordem determinada de aparição, estabelecida pelo próprio poeta: La rosa separada, Jardin de invierno, 2000, El corazón amarillo, Libro de las preguntas, Elegia, El mar y las campanas, Defectos escogidos.
Os últimos poemas que escreveu estão contidos em El mar y las campanas cuja primeira edição é de 28 de novembro de 1973 isto é, dois meses depois de sua morte. São em número de quarenta e nove e muitos deles ficaram em nome. Mas, no livro, para facilitar a sua identificação, recebem o primeiro verso ou parte dele, como título, colocado entre colchetes.
O mar, e os desacertos do século, uma falta de esperança, velhas preocupações renovadas são antigos motivos desses poemas. Alguns, germinam de um ou outro momento fugidio: a lembrança de um rio na sua nascente, a visita de desconhecidos na sua casa em Isla Negra, esse ramo de acácia-mimosa que dourado, lhe ilumina a viagem por estradas de névoa e de terras desertas no crepúsculo desabitado.
Outros, nascem de imagens do passado. A rua em que viveu quando jovem e que talvez não mais exista ou essa outra em que preso aos versos sonhava com jardins parisinos de parques frios e estátuas impecáveis.
Muitos, se enraízam na amargura que só o ter vivido permite conhecer: a solidão entre os outros, feita de silêncios, a constatação de que algo se perdeu para sempre, a inexorabilidade da morte - Porque é obrigatório obedecer ao inverno [...] - na qual estão contidas a solidão e o emudecer.
Poemas de amor, três. E os três para Matilde.
O primeiro, relembra um momento áspero de sua vida: Quando eu decidi me tornar claro / e procurar a mão da desdita que é o mesmo em que encontra a mulher, que a partir de então, o irá acompanhar.
Na segunda estrofe a nomina e também a Chillán, o lugar onde se encontraram. Então, enumera o bem que dela recebe, todos os dias e todas as noites, sempre: o amor na pele que se entrega, ao abrir de todas as janelas do mar, para que voe a palavra escrita.
Cotidiano que se reafirma no título do se­gundo poema “Cada dia Matilde”. Nele, as expressões amorosas lembram àquelas de Los versos del capitán. Mas, se algo da natureza entrelaçado à figura feminina permanece nesses ver­sos, outros elementos indicadores da passagem do tempo se acrescentam: em cada ramo guardas testemunho / de nossas in­deléveis primaveras. Reafirma-se a plenitude de uma presença que delicada como uma flor de anís continua sendo para o poeta uma fonte de vida.

Mas é no terceiro poema que se inscreve a ho­menagem maior à Matilde. Tem por título a palavra “Final”. E Pablo Neruda, assim o afirma a Editorial Losada, o concluiu pouco antes de morrer. “Matilde” é a palavra que o inicia. Um vocativo antecedendo esses versos que sintetizam o calvário do enfermo entre a febre e a dor. A eles se seguem os que dão testemunho da constante presença consoladora da mulher que ama: o mundo é mais azul e mais terrestre / de noite, quando durmo / enorme, dentro de tuas breves mãos.

12 de junho de 1994

O segredo

Durante muitos anos o livro de poemas circu­lou anônimo. Na verdade, querendo ser anônimo porque, em ne­nhum momento para muitos, houve qualquer dúvida sobre quem fora o seu autor.
Foi publicado pela primeira vez, em 1952. Apenas cinqüenta exemplares cuidadosamente impressos em belo papel e com velhos tipos bodonianos.
Houve quem pensasse, então, que não atraves­saria as fronteiras de Nápoles onde veio à luz. Mas, as duas edições que se seguiram mostraram que, a voz do poeta, sendo inconfundível, impedia qualquer segredo.
Assim, em 1963, já no Chile, Pablo Neruda re­conheceu Los versos del capitán como obra sua, mas negando-se, ainda, a esclarecer os motivos que o haviam levado a pre­tender esconder-se na forjada carta que apresenta os versos como sendo de alguém que a própria missivista ignora o nome.
Foi somente em 1974, com a publicação de Con­fieso que he vivido, que o mistério se esclarece. Mais de vinte anos se tinham passado e Pablo Neruda se sentiu livre para, enfim, contar suas razões. E o fez no capítulo de suas memórias cujo título é o do livro que ele considera uma de suas obras mais controversas. Sobre sua gênese, diz que os poemas foram es­critos aqui e ali, ao longo de seu destino europeu. Termi­nou-o na ilha de Capri, hospedado por Erwin Cerio, historia­dor e naturalista que o recebeu em sua casa ao saber que o governo da Itália, atendendo pedido do governo chileno, lhe recusava a permanência em solo italiano.
Pela primeira vez Pablo Neruda morava na mesma casa que Matilde. Para ela escrevia esse livro de amor, apaixonado e doloroso. E foi esse amor, essa paixão brusca e ardente por ela, que o impediu de assumir a autoria de Los versos del capitán. Não havia, ainda, se separado de sua mulher Delia del Carril com a qual vivera dezoito anos. Para que não se sentisse ferida, optou por não reconhecer como seus os poemas de amor que escrevia para outra mulher.
Poemas feitos desse encontro tardio que os fez reviver e de seu destino de guerreiro onde explode o êx­tase diante do corpo feminino feito de rosa, de fruta, de grão de trigo e diante desses sentimentos que fundem os amantes numa só gota de cera ou meteoro, que os torna completos como um só rio, como uma só areia.
Para Pablo Neruda ter encontrado Matilde é o término de uma busca. A sua vinda, para ele anunciada na pele das uvas, no toque da madeira, na amêndoa, prenunci­ando suavidades se revela algo de predestinado que o poeta almeja dure para sempre - e agora entro / na tua vida, / para não sair mais / amor, amor, amor, / Para ficar - num desejo de futuro que ignora todo o passado amoroso que a amada possa ter tido.
Mas, a mulher sentidos, a mulher paixão ele também a deseja como o repouso de sua vida de guerreiro: Minha luta é dura e volto / com os olhos cansados / as vezes de ter visto / a terra que não muda, / mas ao entrar teu riso / sobe ao céu me procurando / e abre para mim todas / as por­tas da vida.
E, incapaz de se afastar de sua luta ainda que um dia possa ter seu sangue escorrendo nas pedras da rua, Pablo Neruda insta a amada a ser aquela que torna suas, as verdades pelas quais ele combate para, então, lutar a seu lado: Vamos, / e tu, minha estrela, perto de mim / recém-nascida de minha própria argila, / já terás achado o manan­cial que ocultas / e no meio do fogo estarás / perto de mim / com teus olhos bravios / levantando minha bandeira.
Mais uma vez ele entrelaça nos seus poemas as suas paixões pela mulher, oásis, companheira e este grande amor que ele sempre sentiu pelos deserdados e esquecidos pelos quais lutou e que fez dele a grande, a incomensurável voz po­ética do Continente