Chileno: E por que os mataram?
Mexicanos: Porque não somos loiros, irmão!
Quando a cabeça
de Joaquín Murieta, degolado depois de morto, toma a palavra, no último quadro
da ópera que lhe conta a história, à guisa de explicação par os seus atos de
bandoleiro movido pelo desespero, as nove estrofes dizem de seu amor por
Teresa, violada e morta pelos norte-americanos e dos atos que a sua mão
justiceira, então, praticou. E de sua preocupação de que, no futuro, aqueles
que hão de vir possam saber a verdade pelos versos do Poeta: Daqui a cem anos, peço, companheiros / que cante para mim, Pablo Neruda.
Fulgor y muerte
de Joaquín Murieta é esse
canto – uma cantata, depois uma ópera – que Pablo Neruda escreve e que Sergio
Ortega irá musicar e que não será apenas uma obra sobre o destino do rebelde
chileno ( aqui dou testemunho do fulgor
dessa vida e da extensão dessa morte) mas também dos outros seus compatriotas que foram para a
Califórnia em busca do ouro que se propalara ali existir. Foram mineiros,
camponeses, pescadores, aventureiros, que o Poeta relaciona no texto de Para
nacer he nacido em que explica o motivo de seu poema: a inquietação diante
da pergunta: era o mais famoso dos
bandidos chilenos [...] apenas um bandido fora da lei? Na verdade, Joaquín
Murieta primeiro foi feliz, casando-se com Teresa e encontrando ouro. Depois,
marcado pela tragédia que lhe transformou a vida, se fez um vingador em busca de norte-americanos para
que não ficassem impunes as humilhações e
assaltos dos bandos racistas, cuja violência ora é narrada pelo coro, pela
canção feminina, pelo trio de solistas, ora mostrada pela ação em cena.
No quarto quadro,
a voz do Poeta canta o árduo trabalho de Joaquín Murieta: com areia nos olhos, com mãos
ensangüentadas, espreita a glória do ouro. Logo, o coro fala da inveja e do
ódio, surgidos do ouro que ele encontra e como o ianque, vestido de couro e capuz procurou o forasteiro. Mais adiante, a
canção feminina fala da cavalgada que sai para matar crianças morenas, bater
nas mulheres, queimar alpendres e exterminar chilenos. Outra vez, o coro
falando sobre o ouro encontrado pelos chilenos que descansam, quando, envoltos
em sombras, chegam os homens com capuz, os lobos se aproximam buscando o dinheiro.
No quinto quadro,
as três solistas relatam da viúva que pede seja entregue a Joaquín Murieta o
rifle de seu marido, assassinado; do menino que oferece seu cavalinho de pau a
pedir vingança para o irmão, morto pelas costas, por um gringo; da mãe que se
diz uma espiga sem grão e sem ouro
porque o filho morreu assassinado.
Mais, incisivas, quem sabe, as cenas
dramáticas. Na taberna El Fandango, confraternizam os latino-americanos,
designados por um e outro, ou pela nacionalidade (argentino,
mexicano, chileno) e se queixam dos parcos resultados do garimpo. Decidem,
assim mesmo, festejar. Um deles chama o garção e é recriminado por um dos rangers, cujo grupo se mantivera no
fundo da taberna. Ordena que deve chamar o garção (mozo em espanhol) de boy. Ao que o chileno concede: Boymozo! Mas, tampouco o que pede,
chicha para todos, agrada a um outro ranger
que decide: You are now in California.
Here’s no chicha. In Califórnia you must have wiskhy. Os chilenos insistem
em querer chicha e os rangers, que
devem beber wiskhy. Impasse que termina quando os norte-americanos põem uma
pistola na testa dos interlocutores e, assim, os fazem ceder e pedir: Boymozo! Um wiskhy. Um deles aconselha
que se deve pedir com água e, então, todos eles esclarecerem, em uníssono: um wiskhy com water-closet!. Troça
simplória que bem parece ser o que merece a arbitrariedade norte-americana. Que
se mostrará mais agressiva no quadro seguinte onde numa espécie de rito com uma cerimônia ao mesmo tempo lúgubre e grosseira,
um grupo de homens com capuz, designando-se os donos do ouro, se apóiam naquele
que chamam de nosso profeta Sullivan para justificar o dever que
lhes cabe: queimar e enforcar os índios, os chilenos, os mexicanos, os mestiços
para que exista, apenas, a raça branca.
E, ainda, uma outra vez, quando os norte-americanos increpam os chilenos e os
mexicanos – O que fazem aí? São cidadãos
norte-americanos? Conhecem a Lei? –
dizendo que devem partir porque eles não querem negros, nem chilenos, nem
mexicanos: América for the Americans.
Quando, em 1966, Pablo Neruda
escreveu dois breves textos sobre Fulgor y muerte de Joaquín Murieta,
disse tratar-se de uma história romântica
e de cor brilhante, embora termine na escura
cor do luto. No entanto, ainda que seus versos expressem, num memorável
lirismo, o amor entre Joaquín Murieta e Teresa e a tristeza de sua morte,
relatada no quase soneto, ele se
deteve, sobretudo, nessa escura cor do
luto que envolve, não apenas os dois amorosos, mas aqueles que ele diz
serem os chilenos agrestes que com patas
de cão se soltaram em direção ao ouro, se apertaram os cintos trabalhando em
quanta coisa ou coisinha puderam para receber depois o pagamento dos gringos: a
corda, a bala e no mínimo um ponta-pé na cabeça.
Assim, seus versos passam a ser
de muitos porque muitos foram e são e serão sempre – presume-se – as vítimas do
mais forte.
Cecilia Zokner in Literatura
do Continente, O Estado do
Paraná, Curitiba, 21 de setembro de 2003