Divisão dos Arquivos

O Blog Pablo Neruda Brasil está apresentado em quatro seções obedecendo à data de publicação da matéria:

Arquivo Cecilia Zokner

Os breves textos sobre a poesia de Pablo Neruda foram publicados sob a rubrica Literatura do Continente no jornal O Estado do Paraná, Curitiba e fazem parte, juntamente com outros textos versando sobre Literatura Latino-americana, do Blog http:\\www.literaturadocontinente.blogspot.com.br. Os demais, em outras publicações.

Arquivo Adriana

Chilena de Concepción, amiga desde 1964, quando convivemos em Bordeaux, ao longo dos anos me enviou livros e recortes de jornal sobre Pablo Neruda. Talvez tais recortes sejam hoje, apenas curiosos. Talvez esclareçam algo sobre o Poeta ou abram caminhos para estudos sobre a sua obra o que poderá, eventualmente, se constituir uma razão para divulgá-los.

Arquivo Delson Biondo

Doutor em Literatura na Universidade Federal do Paraná. No ano do centenário de nascimento de Pablo Neruda, convidei Delson Biondo, meu ex-aluno do curso de Letras para trabalharmos sobre “Las vidas del Poeta, as memórias de Pablo Neruda”, constituídas de dez capítulos, publicados, em espanhol, na revista O Cruzeiro Internacional, no ano de 1962. Iniciamos o nosso trabalho com a sua tradução, visando divulgar, no Brasil, esse texto do Poeta que somente anos mais tarde iria fazer parte de seu livro de memórias Confieso que he vivido. Todavia, várias razões impediram que a tradução fosse publicada no Brasil, mas continuamos a trabalhar sobre “Las vidas de Poeta” no que se referia aos aspectos formais comparativamente a esses mesmos textos que passaram a fazer parte de Confieso que he vivido. Além desse estudo comparativo, pretendíamos nos aproximar, minuciosamente de cada um dos capítulos de “Las vidas del Poeta”. A comparação foi realizada e o estudo do primeiro capítulo concluído. Estávamos já, terminando a redação do estudo do segundo capítulo quando Delson Biondo veio a falecer em maio de 2014. Assim, as notas comparativas dos textos nerudianos e o estudo do segundo capítulo de “Las vidas del Poeta” não foram concluídos. Penso que a eles nada devo acrescentar.

Arquivo Aberto

Arquivo Aberto à recepção de trabalhos escritos em português ou espanhol que tratem da obra de Pablo Neruda, obedeçam às normas da ABNT e sejam acompanhados de um breve curriculum do autor. Os trabalhos poderão ser enviados para publicação neste Blog pelo e-mail pablonerudabrasil@gmail.com.

29 de setembro de 2003

A América para alguns 1

Chileno: E por que os mataram?
Mexicanos: Porque não somos loiros, irmão!


     Quando a cabeça de Joaquín Murieta, degolado depois de morto, toma a palavra, no último quadro da ópera que lhe conta a história, à guisa de explicação par os seus atos de bandoleiro movido pelo desespero, as nove estrofes dizem de seu amor por Teresa, violada e morta pelos norte-americanos e dos atos que a sua mão justiceira, então, praticou. E de sua preocupação de que, no futuro, aqueles que hão de vir possam saber a verdade pelos versos do Poeta: Daqui a cem anos, peço, companheiros / que cante para mim, Pablo Neruda.
            Fulgor y muerte de Joaquín Murieta é esse canto – uma cantata, depois uma ópera – que Pablo Neruda escreve e que Sergio Ortega irá musicar e que não será apenas uma obra sobre o destino do rebelde chileno ( aqui dou testemunho do fulgor dessa vida e da extensão dessa morte) mas também dos  outros seus compatriotas que foram para a Califórnia em busca do ouro que se propalara ali existir. Foram mineiros, camponeses, pescadores, aventureiros, que o Poeta relaciona no texto de Para nacer he nacido em que explica o motivo de seu poema: a inquietação diante da pergunta: era o mais famoso dos bandidos chilenos [...] apenas um bandido fora da lei? Na verdade, Joaquín Murieta primeiro foi feliz, casando-se com Teresa e encontrando ouro. Depois, marcado pela tragédia que lhe transformou a vida, se fez  um vingador em busca de norte-americanos para que não ficassem impunes as humilhações e assaltos dos bandos racistas, cuja violência ora é narrada pelo coro, pela canção feminina, pelo trio de solistas, ora mostrada pela ação em cena.
            No quarto quadro, a voz do Poeta canta o árduo trabalho de Joaquín Murieta: com areia nos olhos, com mãos ensangüentadas, espreita a glória do ouro. Logo, o coro fala da inveja e do ódio, surgidos do ouro que ele encontra e como o ianque, vestido de couro e capuz procurou o forasteiro. Mais adiante, a canção feminina fala da cavalgada que sai para matar crianças morenas, bater nas mulheres, queimar alpendres e exterminar chilenos. Outra vez, o coro falando sobre o ouro encontrado pelos chilenos que descansam, quando, envoltos em sombras, chegam os homens com capuz, os lobos se aproximam buscando o dinheiro.
            No quinto quadro, as três solistas relatam da viúva que pede seja entregue a Joaquín Murieta o rifle de seu marido, assassinado; do menino que oferece seu cavalinho de pau a pedir vingança para o irmão, morto pelas costas, por um gringo; da mãe que se diz uma espiga sem grão e sem ouro porque o filho morreu assassinado.
 Mais, incisivas, quem sabe, as cenas dramáticas. Na taberna El Fandango, confraternizam os latino-americanos, designados por um e outro, ou pela nacionalidade (argentino, mexicano, chileno) e se queixam dos parcos resultados do garimpo. Decidem, assim mesmo, festejar. Um deles chama o garção e é recriminado por um dos rangers, cujo grupo se mantivera no fundo da taberna. Ordena que deve chamar o garção (mozo em espanhol) de boy. Ao que o chileno concede: Boymozo! Mas, tampouco o que pede, chicha para todos, agrada a um outro ranger que decide: You are now in California. Here’s no chicha. In Califórnia you must have wiskhy. Os chilenos insistem em querer chicha e os rangers, que devem beber wiskhy. Impasse que termina quando os norte-americanos põem uma pistola na testa dos interlocutores e, assim, os fazem ceder e pedir: Boymozo! Um wiskhy. Um deles aconselha que se deve pedir com água e, então, todos eles esclarecerem, em uníssono: um wiskhy com water-closet!. Troça simplória que bem parece ser o que merece a arbitrariedade norte-americana. Que se mostrará mais agressiva no quadro seguinte onde numa espécie de rito com uma cerimônia ao mesmo tempo lúgubre e grosseira, um grupo de homens com capuz, designando-se os donos do ouro, se apóiam naquele que chamam de nosso profeta Sullivan para justificar o dever que lhes cabe: queimar e enforcar os índios, os chilenos, os mexicanos, os mestiços para que exista, apenas, a raça branca. E, ainda, uma outra vez, quando os norte-americanos increpam os chilenos e os mexicanos – O que fazem aí? São cidadãos norte-americanos?  Conhecem a Lei? – dizendo que devem partir porque eles não querem negros, nem chilenos, nem mexicanos: América for the Americans.
Quando, em 1966, Pablo Neruda escreveu dois breves textos sobre Fulgor y muerte de Joaquín Murieta, disse tratar-se de uma história romântica e de cor brilhante, embora termine na escura cor do luto. No entanto, ainda que seus versos expressem, num memorável lirismo, o amor entre Joaquín Murieta e Teresa e a tristeza de sua morte, relatada no quase soneto, ele se deteve, sobretudo, nessa escura cor do luto que envolve, não apenas os dois amorosos, mas aqueles que ele diz serem os chilenos agrestes que com patas de cão se soltaram em direção ao ouro, se apertaram os cintos trabalhando em quanta coisa ou coisinha puderam para receber depois o pagamento dos gringos: a corda, a bala e no mínimo um ponta-pé na cabeça.
Assim, seus versos passam a ser de muitos porque muitos foram e são e serão sempre – presume-se – as vítimas do mais forte.


Cecilia Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná, Curitiba, 21 de setembro de 2003

28 de setembro de 2003

A América para alguns 2

Mexicanos, chilenos, centro-americanos, viviam nos bairros pobres despovoados que apareciam como fungos perto de São Francisco. Ali se ouvia, à noite, o palpitar das guitarras e as canções do continente moreno. Logo, essa abundância de estrangeiros, de ouro, de canções e de alegria suscitou a violência. Os norte-americanos formaram associações de guardas brancos que chegavam de noite sobre essas casas, incendiando, arrasando e matando. Pablo Neruda em Para nacer, he nacido.

            Os versos são de Pablo Neruda. A música, de seu compatriota Sergio Ortega: Fulgor y muerte de Joaquin Murieta, trinta e seis anos depois de sua estréia em 1967 é, outra vez, encenada em Santiago do Chile.
            Melodrama, ópera, pantomima, hesita Pablo Neruda. Ópera chilena, define o compositor. Drama, música, canto, teatro e orquestra?, se pergunta Sebastián Ferrada, ao escrever sobre a apresentação que se deu no Teatro Municipal, no passado mês de junho. Sem dúvida, um espetáculo muito especial. Pelas questões que faz surgir em relação ao personagem (Joaquín Murieta realmente existiu? Era um mexicano ou um chileno?); ao gênero musical a que pertence a obra (ópera, drama musical, cantata popular?); às dificuldades de montagem na qual participam (entre o coro, a orquestra, os cantores, o corpo técnico, os atores), mais de duzentas pessoas; aos seus cenários, muitas vezes trocados, ao seu guarda-roupa de mais de quinhentos trajes. E a sua complexa partitura onde se misturam diferentes estilos (canto lírico, cuecas, tango, jazz, salsa e cachimbo), onde estão presentes inúmeros instrumentos de percussão e muitas variações musicais e simultaneidade de diversas vozes. Há vários coros: dos vendedores de jornal, dos marinheiros, dos bêbados, dos assaltantes, dos garimpeiros, dos homens, das mulheres, o coro funerário. Há as canções: a masculina, a feminina. Há as cantoras: a negra, a loira, a morena. E há as três canções que não fazem parte da obra, mas dela tampouco estão longe e, talvez, a conduzam: a “Canção masculina”, a “Canção feminina”, a “Canção” que podem ser cantadas, segundo a orientação que as introduz, diretamente para o público, na sala ou no foyer antes de se iniciar o espetáculo ou durante os entreatos.
Elas remetem a um presente que se enreda no passado a visar, principalmente, o futuro. Na “Canção masculina”, a afirmação hoje matam negros, do primeiro verso, se completa pelas expressões como e antes que se referem ao que acontecia com os mexicanos,  chilenos,  nicaragüenses, peruanos, vítimas todos dos gringos. Até que passa um cavalo de seda e Joaquín Murieta disputa o terreno, encara o inimigo e o desafia: e como duas amapolas / se acenderam suas pistolas. Na “Canção feminina”, seu nome já é citado no primeiro verso e como o defensor de sua gente e cuja arma é a de um valente, cujas mãos, agrestes, cujos olhos, vingadores. Expressões que o desenham antes de lhe justificar os atos ou de desejá-los: Que mate os que mataram.
A “Canção” completa a trilogia. Já está liberta da figura/mito de Joaquín Murieta para se fixar mais longe em tempo e espaço definidos: Vietnam e Espanha, presa dos nazistas que sempre serão, ainda, mais amplos, pois, na verdade, pouco muda  Porque manejam a História / os cruéis e os ariscos. E, assim, não importa que os versos se fixem nas vítimas do momento e lembrem da responsabilidade dos humanos para com os humanos: todos os olhos do mundo / morrerão / porque o mundo está morrendo / no Vietnam. Porque diante das dicotomias que reinam – Bem e Mal, Paz e Guerra, Opressor e Oprimido – não perderão nunca a atualidade. Porém, Pablo Neruda interroga: Algum dia / terminará a agonia?, Terminará a crueldade / e reinará a alegria? E o que lhe é também muito próprio, cultiva certezas. E elas, nos seus versos, proclamam a alegria, a rebelião, a luta.


Cecilia Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná, Curitiba, 28 de setembro de 2003

14 de setembro de 2003

Jura de vingança


                                                            E beijando seu corpo caído, fechando os olhos daquela que /
                                                            foi seu roseiral e sua estrela, jurou estremecido matar e
                                                            morrer perseguindo o injusto, protegendo o caído.

     Apresentada pela primeira vez em 1967, como cantata – poema lírico acompanhado de música – Fulgor y muerte de Joaquín Murieta, peça dramática de Pablo Neruda, musicada por Sérgio Ortega, emocionou o publico. A música foi num crescendo até ficar com todos nós, disse, na ocasião, Pablo Neruda. Em 1994, o compositor decidiu transformá-la numa ópera, cuja estréia, quatro anos depois, se deu no Teatro Municipal de Santiago. Agora, no passado mês de junho e no mesmo cenário, foi novamente apresentada. Agustín Squella, no El Mercúrio do dia 17 de julho passado, de Santiago, comenta essa apresentação: Há algumas semanas, quando no Municipal de Santiago, caiu a tela de uma das funções da ópera Fulgor y muerte de Joaquín Murieta, tive a impressão de que os aplausos do público convidado eram escassos, embora não pela montagem da obra ou a qualidade dos intérpretes, mas, como eu entendi, pelo desconforto dos assistentes diante do texto que enaltece a figura de um bandido, ou talvez apenas de um rebelde por cuja cabeça o governo norte-americano da época oferecia cinco mil dólares. Uma reação que demonstra, vivamente, a atualidade dos versos de Pablo Neruda, cantando o destino de Joaquín Murieta: domador de cavalos que sucumbiu à atração do ouro na Califórnia e, com outros chilenos, embarcou para os Estados Unidos nos meados do século XIX. No navio, se apaixona por Teresa e ao desembarcarem já estavam casados. Mal começara a sua luta em busca do ouro quando, um dia, ausente de casa, muitos homens com o rosto coberto por um capuz a invadiram, violaram e mataram sua mulher. Joaquín Murieta se transformou num chefe bandoleiro e o governo norte-americano – terá punido os culpados? – oferece um prêmio pela sua cabeça.
            Seis quadros compõem a obra: “Porto de Valparaíso. Partida”, “A travessia e a boda”, “O Fandango”, “Os galgos e a morte de Teresa”, “O fulgor de Joaquín”, “Morte de Murieta”. O quarto quadro se inicia com a Voz do Poeta, anunciando o que irá se passar: os homens chegando e batendo na porta, botando-a abaixo com empurrões e pontapés, os gritos de Teresa pedindo socorro e o seu silêncio e o chamado de um dos homens na porta da casa (Come on) para os seis ou sete que esperavam e que também entram na casa. Ouvem-se tiros, eles saem em disparada depois de por fogo na casa. A fumaça atrai homens e mulheres que, procurando salvar pertences, encontram Teresa violada e morta. Vozes se elevam para dizer que é preciso avisar Murieta. Segue-se um longo silêncio antes de seu grito doloroso e trágico. O coro feminino diz da vingança que ele clama, enceguecido. Vingança que irá executar no quinto quadro onde a canção masculina irá completar o que o cenário, com as silhuetas dos enforcados e o ruído de cavalgadas, mostra: Com o poncho embravecido / e o coração destroçado/ galopa nosso bandido / matando gringos malvados. Logo um recitado enumera os caídos (um, dois, sete) e três solistas interrogam o público – onde está Joaquín Murieta? Onde estão seu cavalo e seu raio e seus olhos ardentes? – indicando um paradeiro desconhecido e repetindo o que ele procura: vingar seu povo, sua raça, sua gente. E contam como as mulheres o protegem, esperando (a viúva, a irmã, a mãe) serem, também, vingadas e decretam: Galopa Murieta e incitam à vingança. Elas se retiram e se iniciam as cenas em que os homens pretendem segui-lo, em que o índio quer lhe pedir ajuda para o seu povo em que os norte-americanos decidem a sua morte. Retorna o coro feminino para predizer que a sua hora está próxima e a Voz do Poeta lhe defende as ações: justiça se chama a ira de meu compatriota Joaquín Murieta. O que a voz coletiva irá reafirmar no quadro seguinte, referindo-se a ele como raio de janeiro a vingar os seus, e às suas mãos que vingaram tantas ofensas, a seu sangue, vingador e verdadeiro, e às suas razões: Ela morreu assassinada / e ele, para vingar sua beleza, / chegou a tanta desventura. E, também, desenhando-lhe um perfil – um valente, um heróico acurralado, filho ensanguentado e sangrento do ouro e da fúria terrestre, encurralado e vencido pelo ódio e pela cobiça – dar outro significado ao de bandoleiro que pretende justificar as perseguições e a emboscada final e o opróbrio de lhe terem cortado a cabeça e a exibido numa feira.
            Pablo Neruda quis livrá-lo do esquecimento que lhe votou a pátria – A pátria esqueceu aquele espanto e sua pobre cabeça cortada e caída – e lhe canta o amargo e violento destino, convicto de que, o trazendo de volta ao Chile, nos seus versos, o Povo vai repetir a sua longa cantata de luto.
            Ainda que impere o desagrado e o silêncio dos bem-pensantes.


Cecilia Zokner in Literatura do ContinenteO Estado do Paraná, Curitiba, 14 de setembro de 2003

9 de julho de 2003

Jura de amor


                                                            entregarei a ti a minha vida enquanto viva/                                                                                                                        e quando morrer te darei a minha morte.


Em 1963, o compositor chileno Sergio Ortega, hoje residindo na França, compôs a música para a peça Romeu e Julieta, traduzida por Pablo Neruda e que era montada em Santiago do Chile. O poeta gostou muito do sentido popular e comunicativo que essa música possuía, o que o levou a sugerir ao compositor que trabalhassem juntos na elaboração de uma obra de teatro: Fulgor y muerte de Joaquín Murieta. O resultado foi uma cantata que estreou no dia 14 de outubro de 1967 e se constitui a única obra de Pablo Neruda para o teatro. Três textos a antecedem: um deles, tirado do livro Viajes de Benjamin Vicuña Mackena, publicado em 1856 e que menciona o cemitério de São Francisco onde, numa centena de lápides pobres, os epitáfios contam a história da Califórnia, feita de fome, assassinatos, tristezas, naufrágios e vinganças e da qual não estiveram ausentes os chilenos. Igualmente, breves, os de Pablo Neruda. Num deles, rotula a sua obra de trágica, mas também, em parte, escrita de brincadeira. Quer ser um melodrama, uma ópera e uma pantomima. Daí sugerir ao diretor que a fará representar que invente situações ou objetos fortuitos, traje e decorações. No outro texto, com o título de “Antecedências”, fala sobre o personagem que dá o nome à peça e que ele considera, não como um bandido, mas como um rebelde: Joaquín Murieta, um domador de cavalos que, juntamente com outros chilenos, parte de Valparaíso, em mediados do século XIX, atraído pelo ouro da Califórnia. Durante a viagem, conhece Teresa com quem se casa e vive um idílio muito breve, porque, logo ao chegar aos Estados Unidos, ela será violada e morta por um grupo de homens que, estando ele ausente, lhe invadem a casa. Joaquin Murieta se tornará um chefe bandoleiro, cuja vida será posta a prêmio pelo governo norte-americano, disposto a pagar cinco mil dólares por sua cabeça. E sua cabeça cortada, diz Pablo Neruda, reclama essa cantata que ele, então, escreve, não apenas como uma oratória insurreta mas, também, como um certificado de nascimento, pois seus papéis de identidade se perderam nos terremotos e nas lutas pelo ouro.
             No teatro, onde se apagam todas as luzes, se eleva a voz do poeta, anunciando a história de seu compatriota, o honorável bandido dom Joaquín Murieta. É o “Prólogo” para os seis quadros em que a voz do Poeta se fará ouvir mais cinco vezes para, juntamente com outras vozes – exclamações, queixas, coros, cantos – tirar do esquecimento a figura de Joaquín Murieta e seu destino. O quadro segundo, “A travessia e a boda”, tem início na ponte do navio, com as vozes de um quarteto que relatam o encontro e o casamento de Joaquín Murieta com Teresa: e na primavera marinha, Joaquín, domador de cavalos, tomou por esposa à Teresa, mulher camponesa. A seguir, uma canção masculina retoma o desafio da busca do ouro e o coro feminino exprime a tristeza de deixar a pátria e os presságios de má fortuna o que é quebrado pelo diálogo jocoso entre dois chilenos. Novamente, a canção masculina que cessa diante da voz do poeta a pedir silêncio para a lua de mel de Joaquín Murieta e de Teresa. Todos se retiram de cena, levando o dedo aos lábios. Diminuem todas as luzes do cenário. Céu intenso. Noite estrelada. O cenário vai-se apagando e as estrelas começam a se tornar maiores até se converterem em imensas flores de luz. Somente se vê uma pequena janela iluminada de onde saem a Voz de Joaquín Murieta e a Voz de Teresa. Escuta-se o barulho do mar. E o título “Diálogo amoroso”, anuncia a luminosa expressão de amor.
Nas primeiras estrofes, o desejo de se desvendar (sou camponesa de Coihueco, sou um homem sem pão nem poder). Logo, o amor irá conduzir os versos que os delineiam nesse desejar que se entrelaça no outro: Murieta a encontrar no ouro razão para defender a amada (Agora quero o ouro para o muro / que deve defender a tua beleza); Teresa, só a querer o que do amado possa advir (Só quero o baluarte de tua altura / e só quero o ouro de teu arado). E nos recursos do poeta, as metáforas (pela boca da amada sente o chamado da aveleira¸ percebe no seu cabelo o perfume das montanhas) e as comparações (os braços da amada são como os alelis de Caranpangue; sua voz corre como a água em movimento) revelam a ligação de Joaquín Murieta com a natureza. De seus elementos lhe vem o que aprendeu (Quanto conheço o aprendi da água, do vento, das coisas mais simples) e a aceitação de ignorar o que é impossível saber: perguntar ao amor é coisa rara, / é perguntar cerejas à Cerejeira. Todo um universo de sensações arraigadas no passado, renovadas pelo amor que o inunda e no qual se confundem a mulher e a terra natal: Beijo a minha terra quando a ti te beijo.
Um ritual efêmero de passageira alegria que logo dará lugar às palavras de esperança de Teresa a almejar o retorno à pátria e à certeza de Joaquín Murieta: O ouro é o regresso. Esperança e certeza que não irão se cumprir, pois eles estão fadados à morte em terra alheia e sob o signo da covardia. Fado que Teresa, talvez, tenha pressentido quando, nos versos do poeta, entrega a sua vida a Joaquín Murieta e também a sua morte.


Cecilia Zokner in Literatura do ContinenteO Estado do Paraná, Curitiba, 9 de julho de 2003

15 de junho de 2003

O homem invisível

            É o primeiro poema de Odas elementales, “El hombre invisible”, cuja apresentação gráfica já mostra se constituir um material diferente daquele que compõe o livro: cantos dedicados às coisas comuns do cotidiano. Feito de uma longa estrofe de quase cinqüenta versos e iniciada com o pronome pessoal “eu” que declara rir e sorrir dos velhos poetas que sempre dizem “eu”, se revela como a poética de Pablo Neruda, poesia simples para homens simples que, no início da década de 50, ele proclamava. Em 1954, ano em que foi publicado o seu primeiro livro de odes, nas quais trabalhava desde 1952, ele disse a Emir Rodriguez Monegal (El viajero inmóvil, Buenos Aires, Losada, 1966) que desejava criar uma poesia de afirmação, de verdade e beleza, de fé na vida, de vitória e de confiança no futuro. Muito embora tais palavras se prendam a uma certa grandiloqüência que pode resultar, como geralmente soe acontecer, falsa ou enganosa, nos versos de “El hombre invisible” ele se refere ao dever do poeta: dar a todos os homens um testemunho sobre o mundo, pois o poeta tem olhos para ver os que lidam com fios elétricos, os que amassam o pão, cortam madeiras, transformam o ferro em fechadura, rasgam a terra, levam cartas, voltam do mar . E, nos poemas que seguem, ele canta tudo o que seja essencial para o homem: a claridade, a chuva, o mar, o fogo, o ar, o pão, o azeite, a alcachofra, o vinho, o galo, a migração dos pássaros. Também o que nele pode se abrigar: o amor, a inveja, a solidão, a esperança. Perseguindo tantos mundos e querendo tanto expressar o mundo dos homens, o cansaço o vence, o imobiliza para olhar as estrelas, perceber o inseto que passa, sentir a mulher amada e para, da alma, deixar emergir a onda de mistérios, / da infância, / o choro pelos cantos, / a adolescência triste. São as vivências de menino órfão e pobre que, tanto quanto o querer dar um sentido à vida e propagar a alegria, estão na origem de seu verso, que recusa a alienação da torre de marfim, para dizer da fome, do trabalho, da impossibilidade de poder pagar o aluguel, da greve e da repressão.
            Confessional, ingênuo nos seus recursos, “El hombre invisible”, como toda a poesia de Pablo Neruda se ilumina quando ele, no seu canto, se entrelaça ao destino dos homens.
            E o que não é raro nos seus versos, ele se autodefine. Nesse poema, ele está presente como o que segue pelas ruas sem misteriosas sombras, sem trevas, a ouvir confidências das pessoas com quem cruza e das coisas que pedem que as cante. Como o que deseja é que todos vivam a sua vida e cantem com seu canto, corre e vê e escuta. Exatamente o contrário daquele que designa como velho poeta (antigo irmão, pobre irmão) que nas ruas nada vê (nem pescadores, nem livreiros, nem pedreiros) e que escreve sobre oceanos / que não conhece e pensa que é diferente de todo o mundo e se acha interessante. Traçado de um perfil, que lhe dá o ensejo de se servir da troça, ao esboçar-lhe, com os adjetivos: profundíssimo e tenebroso um modo de se sentir ou de sofrer porque seus sentimentos são marinhos. E que reafirma nos verbos que traduzem, prosaicamente, um ser e não ser desse poeta que se acredita tão grande / que não cabe em si mesmo, que se enreda e desenreda que se torce e se retorce. Uma troça que se completa nos inúmeros pleonasmos a reforçarem ausências nos poemas em que ninguém cai / de um andaime, / ninguém sofre, / ninguém ama, / [...] ninguém vive, [...] ninguém chora de fome / ou de ira, / ninguém sofre em seus versos / porque não pode pagar o aluguel. Ou,  nas fábricas / tampouco acontece nada, / nada acontece. Como reforçam o que é silenciado: chegam soldados, /  disparam / disparam contra o povo.
             Ainda que em menor número, também vai usar o pleonasmo para marcar o seu itinerário pelas ruas e uma vintena de adjetivos dos quais apenas se destacam geladas, qualificando constelações e submersa, qualificando prata. O que, na verdade, como a presença de uma única metáfora (a vida é uma caixa / cheia de cantos) e das quatro comparações (a vida repleta como o milho, de grãos, a vida corre / como todos os rios, a vida é uma luta / como um rio que avança, durmo como uma macieira), não lhe torna mais expressivo o verso. Tais recursos podem parecer demasiado corriqueiros, como, também, o uso de expressões que se opõem, como o veludo / duro/  da noite que treme (a maciez do pano em oposição à rigidez da noite que, ainda assim, treme); e daquelas que, justapostas, constituem enumerações de elementos oriundos de universos diferentes (orvalho, lua, diamantes, gotas de prata submersa ou cartas, soluços, beijos) um recurso muito próprio e frequente nos poemas de Pablo Neruda.
            Porém, seus anseios de transformar toda a dor do mundo inteiro em esperança; de almejar todas as alegrias / ainda as mais secretas para que sejam conhecidas; de possuir as lutas / de cada dia porque elas são o seu canto e fazem esquecer imperfeições. Entre os versos e os homens querem me dizer [...] porque lutam, / se morrem / porque morrem há aquele, muito breve: dizer-te. Isto é, não apenas a ele se dirige a voz dos homens, mas também a quem quiser ou puder escutá-la. O poeta, então, se concede acreditar que o seu canto reúne todos os homens. E se concede sonhar que, homem invisível, ele canta com todos os homens.


Cecilia Zokner in Literatura do ContinenteO Estado do Paraná, Curitiba, 15 de junho de 2003