Quero
que o que eu amo siga vivo
e
a ti eu te amei e cantei sobre todas as coisas,
por
isso continua florescendo, florida.
Pablo Neruda.
Cien sonetos de amor, como outros de
seus livros publicados entre 1958 e 1964 é, no dizer de Emir Rodriguez Monegal,
o livro das folhas outonais de Pablo
Neruda. Um livro que se inscreve nesse momento da vida do poeta em que se
revelam as experiências mais complexas e profundas que ele irá aprisionar nas
leis do soneto. Não mais aquele soneto clássico, feito para cantar com
perfeição a mulher amada mas outro, pleno, também, do poético encontrado no
mais chão do cotidiano. Porque Pablo Neruda se apropriando das coisas e dos
seres, na sua avidez de existir e no seu poder de forjar maravilhas lhes dá
vida com as palavras. Sejam elas oriundas do mais simples e real prosaico,
sejam possuidoras da força de sugestão exigida para a elaboração do poético. Fiel
a si mesmo, nos Cien sonetos de amor
em que a presença da mulher amada se faz de enumerações, de comparações, de
metáforas, de confissões, de lembranças, do vislumbrar do futuro, a sua emoção
se ampara, ainda uma vez, dos elementos da terra: e âmbar, areia, turquesas,
ágata, esmeraldas, metais e cereais e flores e frutos. Referências à acácia,
amapola, amaranto, cravo, gardênia, jasmim, madressilva, magnólia, nenúfar,
rosa e violeta se espalham pelos sonetos, assim como aquelas a uns poucos
frutos: ameixa, amêndoa, laranja, limão, maçã, melancia, pêssego, uva.
Acácia,
amapola, amaranto, gardênia, magnólia, madressilva, nenúfar (exceção feita da
madressilva cuja referência é feita ao perfume que exala e da gardênia num
verso onde se vislumbram suas inquietações sociais), são expressões que
aparecem uma única vez e para delinear Matilde: tens peso de acácia, de legume dourado, e tu irás aparecer em outra estrela, /determinadamente transitória, /convertida
por fim em amapola, se tinge tua boca
de amaranto, oh! radiante magnólia
desatada na espuma, deixa que teus
quadris imponham na água /uma nova medida
de cisne ou nenúfar.
Ao
jasmim e à violeta são feitas duas referências: numa delas, jasmim aparece para
dar idéia de um romper da ordem natural das coisas, em outra, metaforicamente,
significando as pegadas de Matilde. E, violeta, num epíteto, significando um
amor áspero, violeta coroada de espinhos, e para designar a voz de
Matilde, carregada de violetas.
Quase
numa dezena de vezes é a presença do cravo e da rosa: o cravo, usado, sempre,
no plural, terá função de espaço (ali
onde respiram os cravos), será gosto na boca do poeta, fruto da terra,
qualidade de Matilde nos seu desprender de aromas e recompensa (os amantes
felizes têm direito a todos os cravos).
A palavra rosa aparece tanto no singular quanto no plural. Para descrever o mar
e suas ondas ou comparada a uma pedra do mar ou à luz que traz Matilde nas
mãos, ou objeto de seus cuidados ou numa comparação em que o poeta reafirma o
amor que sente e, ainda, num epíteto para o amor: rosa molhada por sereias e espumas.
Quanto
aos frutos, o poeta repetirá, sobretudo, a palavra uva. Para dizer do estilo de
Matilde (estilo de uva grande), para
definir o amor e numa comparação em que desditas
são comparadas à uvaspequenas que
juntaram o verde amargo. Também, repetidas vezes, a palavra maçã: dando-lhe
a primazia de poder tocar Matilde: Não te
toque a noite, nem o ar, nem a aurora, /só a terra, a virtude dos cachos, /as maçãs que crescem ouvindo a
água pura), e para esboçar um espaço de luz e de liberdade.
Duas vezes aparecerão
melancia e laranja. No soneto XX os beijos de Matilde são comparados ao frescor
da melancia e no soneto LXXVI, a sua boca é a melancia; no soneto XCIX, o poeta
a vê caminhando entre as melancias. Da laranja é a cor da vespa e laranja é,
como o relógio, claridade ou sombra, alvo de despedidas. Limões são luz;
pêssegos, como a ágata e o trigo, matérias próprias para erigir a estatua de
Matilde. Ameixas são o perfume de sua sombra, amêndoa, a pele que o poeta
almeja. Por castanha, a qual acrescenta o adjetivo despenteada, designa a mulher amada.
Esse
curioso emprego do adjetivo, antropomorfizando o fruto se constitui uma das
muitas surpresas que oferecem os sonetos nerudianos de Cien sonetos de amor. Mas, há, igualmente, além dessas surpresas
ancoradas no inesperado do adjetivo (rosa
molhada por sereias e espumas, uvas tempestuosas),
as que inventam um mundo de contradições (violetas
coroadas de espinho, povoados lancinantes
de andrajos e gardênias) ou que rompem a lógica nesse dizer em que os
limões desprendem luz e as sombras, perfumes.
Assim,
num dizer prosaico do dia a dia ou na esmerada riqueza de um verso perfeito,
são cores e perfumes e formas que emergem num desabrochar e florescer de emoção
para delinear ou homenagear Matilde. E, ao envolvê-la ou entrelaçá-la nesses
frutos e nessas flores, dádivas da terra, Pablo Neruda se mostra, como nunca,
nos seus melhores e verdadeiros ímpetos de lirismo.
Cecilia
Zokner in Literatura do
Continente, O Estado do
Paraná, Curitiba, 24 de setembro de 1994