É o primeiro
poema de Odas elementales, “El hombre invisible”, cuja apresentação
gráfica já mostra se constituir um material diferente daquele que compõe o
livro: cantos dedicados às coisas comuns do cotidiano. Feito de uma longa
estrofe de quase cinqüenta versos e iniciada com o pronome pessoal “eu” que
declara rir e sorrir dos velhos poetas que sempre dizem “eu”, se revela como a
poética de Pablo Neruda, poesia simples para homens simples que, no início da
década de 50, ele proclamava. Em 1954, ano em que foi publicado o seu primeiro
livro de odes, nas quais trabalhava desde 1952, ele disse a Emir Rodriguez
Monegal (El viajero inmóvil, Buenos Aires, Losada, 1966) que desejava
criar uma poesia de afirmação, de verdade
e beleza, de fé na vida, de vitória e de confiança no futuro. Muito
embora tais palavras se prendam a uma certa grandiloqüência que pode resultar,
como geralmente soe acontecer, falsa ou enganosa, nos versos de “El hombre
invisible” ele se refere ao dever do poeta: dar a todos os homens um testemunho
sobre o mundo, pois o poeta tem olhos para ver os que lidam com fios elétricos,
os que amassam o pão, cortam madeiras, transformam o ferro em fechadura, rasgam
a terra, levam cartas, voltam do mar . E, nos poemas que seguem, ele canta tudo
o que seja essencial para o homem: a claridade, a chuva, o mar, o fogo, o ar, o
pão, o azeite, a alcachofra, o vinho, o galo, a migração dos pássaros. Também o
que nele pode se abrigar: o amor, a inveja, a solidão, a esperança. Perseguindo
tantos mundos e querendo tanto expressar o mundo dos homens, o cansaço o vence,
o imobiliza para olhar as estrelas, perceber o inseto que passa, sentir a
mulher amada e para, da alma, deixar emergir a onda de mistérios, / da
infância, / o choro pelos cantos, / a adolescência triste. São as vivências
de menino órfão e pobre que, tanto quanto o querer dar um sentido à vida e propagar a alegria, estão na origem de
seu verso, que recusa a alienação da torre de marfim, para dizer da fome, do
trabalho, da impossibilidade de poder pagar o aluguel, da greve e da repressão.
Confessional,
ingênuo nos seus recursos, “El hombre invisible”, como toda a poesia de Pablo
Neruda se ilumina quando ele, no seu canto, se entrelaça ao destino dos homens.
E o que não é
raro nos seus versos, ele se autodefine. Nesse poema, ele está presente como o
que segue pelas ruas sem misteriosas sombras, sem trevas, a ouvir confidências
das pessoas com quem cruza e das coisas que pedem que as cante. Como o que
deseja é que todos vivam a sua vida e cantem com seu canto, corre e vê e escuta. Exatamente o contrário
daquele que designa como velho poeta (antigo irmão, pobre irmão)
que nas ruas nada vê (nem pescadores, nem livreiros, nem pedreiros) e que escreve sobre oceanos / que não conhece
e pensa que é diferente de todo o mundo e se acha interessante. Traçado de um
perfil, que lhe dá o ensejo de se servir da troça, ao esboçar-lhe, com os
adjetivos: profundíssimo e tenebroso
um modo de se sentir ou de sofrer porque seus
sentimentos são marinhos. E que
reafirma nos verbos que traduzem, prosaicamente, um ser e não ser desse poeta
que se acredita tão grande / que não cabe
em si mesmo, que se enreda e
desenreda que se torce e se retorce.
Uma troça que se completa nos inúmeros pleonasmos a reforçarem ausências nos
poemas em que ninguém cai / de um
andaime, / ninguém sofre, / ninguém ama, / [...] ninguém vive, [...] ninguém
chora de fome / ou de ira, / ninguém sofre em seus versos / porque não pode pagar o aluguel. Ou, nas
fábricas / tampouco acontece nada, / nada acontece. Como reforçam o que é
silenciado: chegam soldados, / disparam / disparam contra o povo.
Ainda que em menor número, também vai usar o
pleonasmo para marcar o seu itinerário pelas ruas e uma vintena de adjetivos
dos quais apenas se destacam geladas,
qualificando constelações e submersa, qualificando prata. O que, na verdade, como a presença
de uma única metáfora (a vida é uma caixa
/ cheia de cantos) e das quatro comparações (a vida repleta como o milho,
de grãos, a vida corre / como todos
os rios, a vida é uma luta / como um
rio que avança, durmo como uma
macieira), não lhe torna mais expressivo o verso. Tais recursos podem
parecer demasiado corriqueiros, como, também, o uso de expressões que se opõem,
como o veludo / duro/ da noite
que treme (a maciez do pano em oposição à rigidez da noite que, ainda
assim, treme); e daquelas que, justapostas, constituem enumerações de elementos
oriundos de universos diferentes (orvalho,
lua, diamantes, gotas de prata submersa ou cartas, soluços, beijos) um recurso muito próprio e frequente nos
poemas de Pablo Neruda.
Porém, seus anseios de transformar
toda a dor do mundo inteiro em
esperança; de almejar todas as alegrias /
ainda as mais secretas para que sejam conhecidas; de possuir as lutas / de cada dia porque elas são o seu canto e fazem esquecer imperfeições.
Entre os versos e os homens querem me dizer [...] porque lutam, / se morrem / porque
morrem há aquele, muito breve: dizer-te.
Isto é, não apenas a ele se dirige a voz dos homens, mas também a quem quiser
ou puder escutá-la. O poeta, então, se concede acreditar que o seu canto reúne
todos os homens. E se concede sonhar que, homem invisível, ele canta com todos
os homens.
Cecilia
Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná,
Curitiba, 15 de junho de 2003