Gilbert Badia, o tradutor francês de Bertold
Brecht, num texto em que trata das dificuldades enfrentadas ao passar para a
sua língua natal a obra do dramaturgo alemão (texto publicado pelas Revista Letras, Curitiba, número 24,
1975), lembra o esquema proposto por Arthur Schopenhauer: dois círculos,
representando um a obra original e o outro, a tradução. Podem ser mais ou menos
sobrepostos e da sua coincidência irá depender a qualidade da tradução. Quanto
mais imperfeita, tanto mais os círculos se apresentarão descentrados.
A tradução de Cien sonetos de amor de Pablo Neruda
pelo poeta gaúcho Carlos Nejar, levando em conta o quê parece se constituir uma
evidência – ser um poeta traduzido por
outro poeta – se mostra bem longe de alcançar essa coincidência dos círculos
que seria, sem dúvida, a meta almejada. Na edição da L & PM Pocket de Porto
Alegre, 1999, são muitos os desvios e tanto no que se refere à sintaxe, quanto
ao vocabulário. Estes, devidos, principalmente, às divergências léxicas, as diferenças que existem entre certos
vocábulos parecidos de ambos os
idiomas que levam o tradutor à escolha de uma palavra em português, pela
sua proximidade com o espanhol, ignorando que a semelhança gráfica, prosódica
e, sobretudo, semântica não se realiza. Assim, perejil, por exemplo, cujo significado, em espanhol, é salsa. Na
tradução, aparece como perrexil.
Embora possa ter, segundo o Dicionario
Espanhol/Português da Porto Editora, a conotação de salsa, em português
perrexil não consta no Novo Dicionário
Aurélio ou Caldas Aulete onde
aparece como “aquilo que estimula o apetite”, significado impróprio para o
verso de Pablo Neruda: cruz verde,
perejil de la sombra radiante, luciérnaga
a la unidad del cielo condenada. Como o soneto se inicia Oh Cruz del Sur oh trébol de fósforo fragante e o verso em
questão, por sua vez, com a expressão cruz verde, é evidente que a relação do
poeta é feita entre o Cruzeiro do Sul (e não Cruz do Sul como quer o tradutor)
e a salsa que o vocábulo trébol (trevo), já usado, torna, ainda mais
aceitável na aproximação com a cruz. Isto é, na passagem do verso para o
português não foi levado em conta o poema no seu todo o quê também irá
acontecer outras vezes. Ao traduzir rachas
(vento forte), por aragem (vento
brando) e ráfaga (vento forte e
violento) também por aragem houve um
abrandamento de sentido sem que houvesse razão para isso pois a palavra
borrascas (tempestades) que antecede rachas já sugere uma rajada louca e não uma aragem louca: mi acordeón com borrascas, rachas de lluvia loca por meu acordeão com
borrascas, aragem de chuva louca. Igualmente no soneto LXIX, Pablo Neruda
se dirige à mulher amada, reconhecendo que ela chegou a sua vida brusca, incitante [...] ráfaga de rosal, trigo del viento. Contexto que exige ser ráfaga traduzido por rajada (vento forte) e não aragem (vento brando) o quê é sugerido
pelos adjetivos anteriores e pela expressão trigo
do vento, indicando um movimento mais forte. Quando usa a palavra fornada que numa de suas acepcões pode significar o que o forno coze de uma vez em lugar de padaria, o exato correspondente em português da palavra usada por
Pablo Neruda, o tradutor se aproxima do sentido do verso original (bienamada bandera de las panaderias) mas
foge de um termo que talvez tenha considerado chão. Mas, não levou em
consideração que o poeta chileno se
permite usar as palavras mais simples e usuais para imortalizar as coisas do
cotidiano. Por outro lado, se de certa maneira se aproxima do original ao
traduzir diminutos por pequenos, diminuindo, no entanto, a
força poética da expressão, ao usar bafo
(ar exalado dos pulmões) por vapor (fluído
aeriforme, produzido pela ação do calor), o tradutor limita a idéia do poema
que fala do vapor que se desprende de um boi enterrado no frio e não, apenas,
de seu respirar. A opção por apreende
(compreende) em lugar de aprende
(aprende) igualmente modifica o sentido do verso, pois é diferente la tierra aprende el húmedo destino de una
copa” de a terra apreende o úmido destino de uma taça. Igualmente
curioso é o uso de duas palavras: clave
e araña. Clave
é traduzida por clave. Mas, se no
verso em espanhol o significado é chave,
explicações dos sinais” (y la clave
redonda del rápido universo”) em português, além da conotação relacionada
com as notas musicais, há apenas uma outra: sinal ortográfico mais conhecido
como chave e usar esta conotação se afasta, sem dúvida, do sentido primeiro do
verso original. Quanto à palavra aranha entre as suas conotações está a
mesma daquela em português: animal
artrópode aracnídeo e com este sentido aparece no verso de Pablo Neruda. O soneto LXXV se inicia com o verso Esta es la casa, el mar, y la
bandera. E da casa
irá falar, do reencontro com ela depois de ausências em que foi relegada ao
silêncio e ao abandono. O primeiro terceto diz, ainda dessa volta à vida que
vai acontecendo: Lloró, lloró la casa
noche y dia/ gimió con las arañas entreabierta/ se desgranó desde sus ojos
negros. Não há dúvida que as
aranhas, como os ratos (ainda que mortos), citados num verso anterior, eram
habitantes da casa vazia. O tradutor conserva a palavra com a grafia portuguesa
(aranha) e coloca uma nota de rodapé, explicando que aranhas são pequenas carruagens puxadas por cavalos. Conotação da palavra do espanhol do
Chile, mas também do português: carruagem
leve, de duas rodas, puxadas por um cavalo.
Assim, entre os muitos desvios que ora apenas diluem a
força da expressão poética, ora lhe conferem outro sentido, a excelência da
tradução se perde nos meandros da displicência. Mas, dizem os sábios, nunca
termina o trabalho de traduzir uma obra e a humildade de recomeçar, convém aos
tradutores.
Cecilia
Zokner in Literatura do Continente, O Estado do Paraná,
Curitiba, 30 de janeiro de 2000
Nenhum comentário:
Postar um comentário